*Matéria escrita por Edson Caldeira
Na história de Brasília é possível encontrar inúmeros candangos que fizeram parte do nascimento da capital. Muitos narram sobre suas origens e a busca de um novo começo num grande espaço de terra onde só havia mato e terra vermelha. Mas poucas pessoas têm uma história tão passional com a cidade quanto Mercedes Urquiza. Natural de Buenos Aires, a curadora de arte sempre teve dentro de si um senso desbravador. Desembarcou naquilo que seria a capital federal em 1957, após viajar 48 dias de jipe para fazer de Brasília seu lar.
Para os historiadores mais ferrenhos, o sobrenome de Mercedes é familiar. O general Justo José de Urquiza, que governou a capital argentina entre 1854 e 1860, é seu tataravô. É dele a estátua que decora o ponto central do bairro de Palermo em Buenos Aires e é para ele a homenagem da rua General Urquiza, no Leblon, no Rio de Janeiro. Mesmo com todo peso de seu clã, Mercedes é categórica ao desinteresse por títulos. Sua obstinação desde a adolescência era se tornar uma mulher independente e bem-sucedida.
“Desde os meus 15 anos, eu me preparava para ser uma executiva. Quer dizer, o máximo que podia ser na época era secretária executiva, mas eu já estava estudando. Fiz taquigrafia em inglês e em espanhol, além do curso de datilografia”, relembra a expositora, ressaltando que sempre gostou de “viver livre, solta, me comunicando, conhecendo lugares e pessoas”.
Absorta em sua própria liberdade, ela começou um namoro com Hugo Maschwitz, que em pouco tempo viraria casamento. A festa realizada na igreja San Martín de Tours foi o último vislumbre de luxo que teria. “A cerimônia marcou o fim da vida na alta sociedade e o começo de um faroeste”. Pouco tempo depois do casamento, um amigo italiano do casal mostrou despretensiosamente um recorte de um jornal brasileiro falando sobre a mudança da capital do Rio de Janeiro para Brasília. “Aquela notícia foi um impacto grande, porque também dizia que a nova capital ia ser construída no meio de um deserto. Decidimos ir. Sem dinheiro, sem família, sem amigos, sem bens materiais, sem roupa, sem emprego. O único certo era que iríamos levar o cachorrinho de seis meses que acabávamos de ganhar, um vira-lata que batizamos de Fleck”.
O trajeto não foi nada fácil. A bordo de um jipe inglês Land Rover da II Guerra Mundial, o casal fez quatro mil quilômetros em 48 dias de viagem. Chegaram a Brasília no dia 18 de novembro de 1957. Menos de dois meses antes, no dia 1º de outubro de 1957, o presidente Juscelino Kubitschek assinou a Lei nº 3.273, agendando para 21 de abril de 1960 a transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília. Detalhes sobre essa aventura são contados no primeiro livro de Mercedes A Trilha do Jaguar: na Alvorada de Brasília, publicado em 2018, em que Mercedes relata os primeiros mil dias da capital. “O que mais me lembro era a forma de entrar na cidade. Tínhamos que atravessar duas tábuas de madeira sobre o córrego Vicente Pires e ir se equilibrando nas duas tábuas para não cair na água. Só tinha gente andando a cavalo, bicicleta e a pé em faixas de terra cheias de buracos”, relembra a curadora que a princípio residiu na Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante.
Ser testemunha ocular do nascimento de Brasília também promoveu encontros inesperados e amizades consolidadas. Uma delas foi com o sueco Åke Borglund, renomado fotógrafo do Expressen, na época o principal jornal de Estocolmo. Em viagem pela América do Sul, ele decidiu documentar o início da construção de Brasília e Mercedes foi sua intérprete, auxiliando-o na produção de alguns dos registros mais marcantes da capital. “Em 1958, ele me ofereceu quase quarenta imagens selecionadas por ele. Mandou pelo correio acompanhado de uma carta de agradecimento. Isso acendeu a chama em mim de querer obter as quase 800 imagens que fizemos juntos em Brasília, muitas delas publicadas no Life Magazine, Paris Match e National Geographic“.
O tempo passou e Mercedes se tornou uma das historiadoras mais reconhecidas da capital. As fotos de Borglund ilustraram exposições, galerias de arte e ela viajou o País narrando pontos altos da criação da cidade. Reencontrou o fotógrafo em Estocolmo 45 anos depois e relatou que chorou de emoção quando viu registros remanescentes e inéditos do Distrito Federal. “Tenho muito orgulho de mostrar ao mundo a maior saga do século 20, que foi a construção de Brasília. Já visitei sessenta países e não consigo parar até hoje”.
A energia de Mercedes é comprovada com o lançamento de seu segundo livro: A Nova Trilha do Jaguar: De Brasília, Minhas Memórias. A nova autobiografia fala sobre o lado jornalista, empresária de turismo e mãe de duas filhas, cinco netos e seis bisnetos, mas também explana como lhe foi consolidado o título de autêntica embaixadora não oficial da cidade.
Curiosidades sobre relatos de festas de gala e visitas de figuras icônicas à nova capital do Brasil, como Che Guevara, rainha Elizabeth II e rainha Silvia da Suécia, além de artistas de fama internacional, que vieram conhecer a cidade modernista de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, também estão no livro, que, segundo a autora, é uma prova de amor pela cidade. “Contar minha história em livro é gratificante pelo prazer de transmitir para as novas gerações fatos de nossa cidade que muitos desconhecem. O Brasil mudou sua história contemporânea depois de Brasília e precisamos continuar divulgando isso”, conclui.