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Conquistas libertadoras ou assepsia no meio social?

As muralhas que diferenciam a loucura da sanidade provocam enfrentamento a certas normalopatias adaptadas

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**_Les bal des folles_** traduzido no Brasil por **_Baile das Loucas_** é um filme de **Mélanie Laurent**, de 2016, em que a diretora relata a história de **Eugenie**, uma jovem burguesa, _inadaptada à rigidez dos costumes da sociedade de sua época_. Uma inadaptação especialmente delineada pela **severidade** do olhar paterno que traduzia a leitura estética de um tempo **enclausurante** para as mulheres, não só pelos _espartilhos_ que as amarravam contra toda e qualquer **espontaneidade**, mas principalmente por tentar emoldurar as cinturas do desejo feminino e **tentar adaptá-los à realidade do lar** e de todos os assuntos referentes à casa e ao **matrimônio**. E o agravante era que Eugenie tinha o poder de _se comunicar com os mortos_.

Produzido com adaptações de passagens históricas do mundo psiquiátrico em um longa-metragem de ficção que estreou em 2021, o **filme mantém fatos verídicos de seu contexto histórico** e **reivindica** de forma pungente o passado de **abusos** contra a posição das mulheres nas instituições psiquiátricas.

Tudo se passa na famosa **Salpetrière**, onde as mulheres que sofriam de problemas psíquicos eram **abandonadas** e/ou **internadas** em instituições fechadas e isoladas do mundo externo. Uma época **marcada pela força** institucional que tinha por direito e dever o domínio dos corpos abarcados por uma moral que já havia se transformado em culpa pelo trabalho histórico da igreja.

O Baile acontecia na instituição e se tornava uma atração popular, reunindo a **Paris do século XI** que gostava de **dançar, embriagar-se, descarregar suas pressões**, formando um espaço propício às diferentes formas de um desabafo social para os convidados de fora da instituição psiquiátrica, ou seja, os concebidos como pessoas normais. _A festança servia como uma oportunidade para esquecerem a rigidez requerida pelo momento social tão opressor da época_.

O evento era incentivado pelo **Dr. Charcot**, um dos médicos psiquiatras mais famosos da época, estudioso da histeria, tutor de **Freud** nas peripécias da hipnose, doutor que coordenava os trabalhos psiquiátricos e neurológicos e fundador da neurologia moderna, que _submetia suas pacientes histéricas a todos os tipos de testes e arbitrariedades_, como as que podemos ver no filme, **um show de torturas** às quais não só os considerados doidos de uma determinada época estavam expostos, mas, sobretudo, _a condição feminina, em meio a sociedade patriarcal do século XIX_.

O baile do qual se trata o filme acontecia na famosa Salpetrière e permitia diluir de certa forma as muralhas que **diferenciavam a loucura da sanidade**, pois em meio a tantas fantasias, _reais ou imaginárias_, parece-me que a proposta da festividade já portava um valor simbólico para o futuro da evolução do campo _psi_. Em meio a tantas fantasias já não se podia mais distinguir quais eram os pacientes, pois, numa espécie de aval catártico propiciado pelo baile, os convidados de fora da instituição, “tidos como normais”, soltavam suas **camisas de força coercitivas** da sociedade e de forma catártica fazem com que os limites que dividem as matrizes científicas da distinção entre patologias e normalidades se diluam.

O filme aponta para as **barbaridades** abusivas às quais eram submetidas as pessoas vistas como loucas, e revela como todas as torturas eram avalizadas em nome de avanços científicos da época. **Foucault** nos introduz seu conceito de **_docilização dos corpos_** e nos revela que as instituições escolares dentre outras **se propunham a punir os corpos** e normatizá-los para assim submetê-los à moral e aos costumes, prática utilizada e mantida pelo ímpeto de torná-los **maleáveis** e **moldá-los** para caberem dentro de uma determinada moral.

**Os açoites** nessas instituições normativas **eram mantidos em nome de uma “evolução civilizatória”** ou até mesmo de uma _assepsia do meio social_, dos ambientes burgueses pomposos que _não gostavam de se confrontar_ com a imagem de categoria de _pessoas excessivamente entregues às suas **pulsões irascíveis**_. Talvez porque estas pessoas representassem manchas inaceitáveis para seus espelhos tão pretensamente **ideários de uma perfeição estética e comportamental**.

Nos anos 2000, ou seja, mais de um século e meio depois, nós nos deparamos com o filme brasileiro **[Bicho de Sete Cabeças](https://www.imdb.com/title/tt0263124/)**, vencedor de vários prêmios, o qual também inaugura, de certa forma, _reflexões sobre a violência e os abusos_ que imperavam em instituições similares à Salpetrière no nosso País e abre as portas para um **debate** legislativo, dando início ao importante **movimento antimanicomial** que proibiu, por fim, as instituições asilares que não garantam os direitos humanos fundamentais.

Os dois filmes aqui citados nos dão a ver, no mínimo, algo comum entre eles, algo que podemos reconhecer como abusivo na conduta social para com tais pessoas e que **hoje demonstram que conquistas foram feitas**. Conquistas não só da psicanálise freudiana e seus desdobramentos pós-freudianos, pois estas implementaram importantes pensamentos que foram propagados em termos teóricos e clínicos e conseguiram de certa forma transmitir seu saber, sobre a proximidade que existente entre os mundos da sanidade e o da loucura.

O primeiro filme, _Les bal de folle_ mostra as **extrapolações e arbitrariedades** às quais eram obrigadas as mulheres menos submissas, mais irascíveis, ou seja, aquelas que se negavam de alguma forma, inconsciente ou não, **a entregar seu corpo** e seu psiquismo ao único desejo possível para sua condição de mulher.

O filme remonta e nos relembra de que lugar viemos **do ponto de vista simbólico e histórico**, além de revelar que o espiritismo, que já há algum tempo representa uma importante corrente religiosa, lá em seu momento embrionário era **pouco compreendido** e era uma doutrina que começava a ser disseminada nos salões burgueses de Paris, inclusive através de **Victor Hugo**, como revela a diretora do filme em uma entrevista ao _El País_.

Eugenie, talvez por ser mulher, não teve o mesmo acolhimento de sua virtude nas rodas sociais da época. Para além de conversar com mortos, apresentava pequenas inadaptações de **etiqueta social**, para além de seu interesse por literatura e por curiosidades de outra ordem, para além do universo obtuso das frivolidades do lugar destinado às mulheres da época foi isolada e tomada por louca, foi segregada do convívio social comum e internada à revelia em Salpêtriere.

Já no outro filme, **Bicho de Sete Cabeças**, quase dois séculos depois da realidade retratada no filme anterior, aqui nos trópicos Brasileiros, Neto, um jovem branco de classe média, é internado em um hospital psiquiátrico por seu pai, ao descobrir um único cigarro de maconha em seu casaco. Os abusos feitos no tratamento e o distanciamento na relação entre pais e filhos são pontos comuns entre as narrativas que se passam mesmo com tantos anos de distância das realidades históricas e culturais. **Entre a França do início do século XIX e o Brasil do século XX vemos um traço comum**, mesmo diante de tantas evoluções científicas no mundo _psi_.

Fato é que hoje, após vinte e um anos do lançamento do filme brasileiro, podemos testemunhar a **inversão** que a camisa de força medicamentosa tem promovido na sociedade, se podemos chamar de liberdade o **rebaixamento dos muros das instituições**, as conquistas de certos direitos sobre os crimes consentidos nos subterrâneos e nos palcos da vida institucional tanto acadêmica quanto asilar e escolar não o são.

Assim, não podemos nos poupar à seguinte _reflexão_: se entendemos por liberdade e evolução o **rompimento dos muros e barreiras enclausurantes** que detinham os excedentes comportamentais das paixões humanas, os moldes das nossas massas amorfas dos nossos corpos, que livres e tributárias da **evolução farmacêutica** caminham, trabalham, procriam, de forma cada dia mais sonâmbula e amortecida pelas amarras medicamentosas lícitas, mereceria mesmo assim o nome de liberdade? Fato que parece no mínimo paradoxal, ao levarmos em conta pais extremamente adictos da indústria farmacêutica que ora internam seus filhos, à revelia dos próprios, em clínicas de dependência química, por terem provado maconha.

Será mesmo que a loucura **continua só sendo possível de ser reconhecida apenas “no outro”**, como vista no primeiro filme? Será que ainda nos encontramos na nossa ânsia histórica de querermos isolá-la, expurgá-la e segregá-la, pela proximidade que de alguma forma a reconhecemos em nós? A personagem Geneviève, enfermeira de Salpetrière, responde-nos bem essa questão, ao reconhecer que os muros que a separavam de Eugenie não eram de concreto e ferro e, sim, de **certo posicionamento subjetivo perante a realidade**. Ela consegue corajosamente escalar o muro simbólico que separa os dois mundos e literalmente passa para o outro lado, deixa seus espartilhos sustentadores da moral **obtusa, moralista e infértil** do ponto de vista subjetivo e de certa forma escolhe passar para dentro do muro, o qual ela própria ajudava a construir para o isolamento de tais pacientes. Dá, assim, seu testemunho de que _estar de alguma maneira mais perto da loucura pode ser terreno mais fértil, interessante e desafiador_ do que certas “normalopatias protéticamente adaptadas”.