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Saúde e nutrição com Clayton Camargos: manteiga ou margarina?

A manteiga é um alimento básico na dieta brasileira há centenas de anos, muito antes da margarina surgir

A manteiga é rica em gordura saturada, de outra parte, a margarina é um alimento ultraprocessado. Decidir qual é mais saudável é extremamente complicado. Sobretudo, porque isso virou um campo de guerra que se divide entre defensores e detratores de uma e outra, e vice-versa.

Eu prefiro ter uma avaliação baseada em evidências daquilo que a ciência nos oferece, do que participar de uma divergência que não vai trazer nenhum esclarecimento quando mediada pela paixão do juízo pessoal.

A manteiga é um alimento básico na dieta brasileira há centenas de anos, muito antes da margarina surgir no início do século XX.

No entanto, em meados do século passado, as pessoas começaram a substituir a manteiga pela margarina, devido ao crescente consenso de que todas as gorduras eram ruins para a saúde. A indústria alimentícia respondeu produzindo versões com baixo teor de gordura de muitos dos nossos alimentos básicos, e as recomendações alimentares diziam às pessoas para reduzir a ingestão de gordura.

Logo depois, a atenção se voltou para a gordura saturada, em vez de todos os tipos de lipídeos. A partir da década de 1950, surgiu lentamente o conceito de que a gordura saturada era a maior culpada e deveria ser substituída pela forma polinsaturada.

Agora, a maré está mudando mais uma vez. No Brasil, houve um aumento no consumo de manteiga nos últimos anos em comparação com a margarina. Há muita confusão em torno da manteiga, incluindo tipos de gordura, então talvez as pessoas tenham voltado a comer o que mais gostam em termos de sabor. Mas ajuda se entendermos o que a ciência está dizendo.

Ocorre que a ciência tem dito muito. Pesquisadores têm investigado os benefícios para a saúde e os custos desses alimentos por décadas. E quando se trata de manteiga e margarina, há muito o que desembalar.

Para fazer manteiga, primeiro o leite é aquecido, depois girado para separar o creme do leite. Esse creme é então resfriado, batido e o leitelho – o líquido restante depois que a manteiga sólida foi separada – é removido. Às vezes, adiciona-se sal à mistura de manteiga restante.

A margarina é feita batendo óleo com água para formar um produto sólido, antes de vários outros ingredientes serem adicionados, como emulsificantes e corantes.

Historicamente, os produtores de margarina adicionavam hidrogênio à sua composição para converter óleos líquidos em gorduras sólidas e torná-las mais fáceis de espalhar. Mas logo perceberam que isso produzia gorduras hidrogenadas ou trans – um tipo insaturado que se tornou notório por suas consequências deletérias para a saúde, como a doença cardíaca coronariana.

Pesquisadores mostraram que uma dieta rica em gordura trans artificial aumenta o colesterol LDL (“ruim”) e reduz o colesterol HDL (“bom”), o que leva a um risco aumentado de doença cardíaca. Na verdade, a gordura trans tem um efeito ainda pior no perfil lipídico do que a saturada. Esse lipídeo é uma forma de gordura insaturada, mas pesquisas mostram que uma dieta rica em gordura trans está associada aos piores resultados de saúde. 

A gordura saturada é composta por moléculas de ácidos graxos sem nenhuma ligação dupla que possa ser quebrada para se juntar a outras moléculas, enquanto as mono e polinsaturadas têm essas ligações duplas. E há vários tipos de saturadas, como as de cadeia pequena, média e longa, e diferentes tipos de polinsaturadas.

O princípio essencial é que alimentos ricos em gorduras saturadas têm mais probabilidade de aumentar o colesterol se você já é portador de doença coronariana, dislipidemia ou outros fatores de risco para doenças cardiovasculares. De acordo com estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), as gorduras trans podem ser responsáveis por 540.000 mortes a cada ano. 

Entretanto, para a população em geral, a ideia de que mudar para uma dieta com baixo teor de gordura pode reduzir doenças cardíacas tem sido questionada nas últimas décadas. Na verdade, grandes ensaios mostraram os efeitos opostos de uma dieta rica em determinados alimentos densos em gordura, como castanhas e azeite de oliva extravirgem, ambos plenos em gordura polinsaturada.

Não deveríamos nos preocupar tanto com a gordura total, o que importa é a proporção contida nela. Especificamente, dos três tipos de gorduras que comemos – saturada, monoinsaturada e polinsaturada – devemos estar cientes de quanto de saturada estamos comendo. A orientação geral é que esse lipídeo não componha mais do que 10% da energia total na rotina alimentar. 

Há agora um reconhecimento crescente de que a gordura saturada não é apenas uma matéria homogênea. Ela é composta por cadeias individuais de ácidos graxos e comprimentos de cadeia definidos pelo número de átomos, o que confere a cada ácido graxo individual propriedades diferentes e impactos variados à saúde.

Estudos nos mostram que ácidos graxos saturados com um número ímpar de átomos de carbono (15 ou 17) estão relacionados a um menor risco cardiometabólico, isto é, as chances de desenvolver diabetes tipo 2 e doença cardíaca. Enquanto isso, aqueles com um número par (16 e 18) estão associados a um risco aumentado. Os ácidos graxos com 15 e 17 átomos de carbono são tipicamente representativos de laticínios.

Isso nos faz pensar: será que os nutrientes sozinhos não ajudam a olhar isoladamente? Poderíamos dizer que, se a gordura saturada vem de laticínios ou peixes, ela é diferente da gordura saturada da carne, por exemplo?

A gordura saturada da carne e da manteiga está relacionada a um risco maior de doenças cardíacas em comparação com a de peixe ou produtos lácteos fermentados, como iogurte.

Os alimentos são muito mais do que a soma de suas partes nutritivas. Eles têm macronutrientes, muitos micronutrientes diferentes, quer dizer, minerais, vitaminas, fibras, sal, aditivos e alguns são fermentados.

De acordo com o sistema de classificação de alimentos processados mais utilizado; enquanto a manteiga é considerada um “ingrediente culinário processado”, a margarina é um alimento ultraprocessado.

Vários estudos associaram alimentos ultraprocessados a resultados ruins para a saúde, incluindo obesidade, diabetes tipo II e doenças cardíacas. No entanto, não há evidências de longo prazo comparando especificamente os efeitos da manteiga e da margarina no organismo. Isso ocorre em parte porque alguns estudos que analisam os efeitos de diferentes alimentos em nossa saúde agrupam manteiga e margarina no mesmo tipo de preparação, junto com outros alimentos.

Um estudo, por exemplo, descobriu que ambas, manteiga e margarina, estão associadas a um risco maior de desenvolver diabetes tipo II, no entanto, a pesquisa precisará ser mais detalhada. Uma maneira é aplicar um método chamado “análise de substituição”, em que a margarina é substituída por uma alternativa não ultraprocessada, com o mesmo número de calorias.

Precisamos de mais pesquisas para comparar subgrupos de alimentos ultraprocessados diretamente com alternativas não ultraprocessadas, e os resultados podem diferir dependendo do resultado de saúde sob investigação. A margarina tem um melhor perfil nutricional em termos de menor teor de gordura saturada do que a manteiga, e ambas devem ser consideradas no contexto de toda a dieta. Todavia, evidências emergentes sugerem que há uma associação entre saúde precária e dietas ultraprocessadas acima e além dos nutrientes.

Além disso, você pode optar por alternativas menos processadas, como o azeite de oliva, que contém gorduras mono e polinsaturadas benéficas, e tentar reduzir a ingestão geral de alimentos ultraprocessados sem focar muito em itens específicos.

Embora tenhamos muitas pesquisas mostrando os impactos negativos de dietas ricas em alimentos ultraprocessados em nossa saúde, o contra-argumento é que alguns desses itens ainda contêm alguns ativos que oferecem benefícios. Por exemplo, a margarina fornece alguns nutrientes, incluindo vitamina A.

O pão integral industrializado é classificado como ultraprocessado. Os cereais matinais são, em sua maioria, ultraprocessados, embora alguns possam ser ótimas fontes de fibras. A ciência não está aí para respaldar uma recomendação de carta branca para evitar todos os alimentos ultraprocessados.

Há menos evidências mostrando os efeitos da margarina em nossa saúde porque, enquanto o perfil nutricional da manteiga varia muito pouco de país para país, a margarina tem uma definição mais ampla e mudou ao longo do tempo. E quando os pesquisadores realizam estudos de longo prazo, eles analisam os padrões alimentares das pessoas no transcurso de décadas.

Mas, embora exista muito menos pesquisas sobre margarina, alimentos com menos gordura saturada, mais polinsaturadas e sem gordura trans são a melhor opção. No Brasil, a legislação corrente proíbe a adição de gordura trans na produção de alimentos. 

São nossos padrões alimentares de longo prazo que realmente importam, assim como nosso consumo geral de gordura saturada ao longo de semanas e meses.

O ponto principal é que depende do quanto se consome. Se você está raspando uma manteiga saborosa em uma torrada uma vez por semana, e o resto da sua dieta é saudável, provavelmente não fará diferença. Mas isso não é o que a maioria dos indivíduos come. As pessoas têm dietas dominadas por alimentos ricos em energia e pobres em nutrientes. Você só precisa entrar em qualquer supermercado e olhar a quantidade de itens que são pré-embalados. Não estamos cozinhando do zero, ou comprando tantas frutas e vegetais, então não percebemos que nossa ingestão de gordura é tão alta quanto é.

A gordura cremosa que você escolher deve ser baseada em suas próprias necessidades individuais de saúde. Temos quase que ser um detetive para descobrir qual é a melhor alternativa. Pense nas principais prioridades para a sua saúde e alinhe todos os rótulos das manteigas e margarinas que você normalmente seleciona e compare-as.

Uma vantagem das margarinas sobre a manteiga, é que é mais fácil usar menos quantidade. Você quase tem que pegar uma britadeira para manejar a manteiga refrigerada, e termina com pedaços enormes no alimento.

No final das contas, qual das duas você escolheu é apenas uma parte do quebra-cabeça nutricional da contemporaneidade. Em outras palavras, pode ser que o que você está passando no pão não seja o mais importante. Se você estiver colocando manteiga em uma espiga de milho, em vez de um croissant, é uma refeição completamente diferente.

Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.

 

Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.

CRN-1 2970.

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