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Artigo: Amanda e Mauro, por Antonio Veronese

Novo texto sobre a realidade de crianças que trabalham desde cedo para garantir o sustento
Foto: Reprodução/Tribunal da Imprensa Livre

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Segunda-feira, cinco da manhã. No barraco encarapitado no alto da favela, Mauro, de dezesseis anos e corpo físico de doze, toma uma xícara de café com leite aguado e mastiga às pressas uma “fetta” de pão lambido de manteiga. Bermuda e camiseta, par de tênis surrado com as meias furadas nos calcanhares e o olhar perdido no facho de luz que, como um laser, escapa da janela e corta a escuridão do quarto onde a mãe ainda dorme.

Cenário dois: outro barraco espetado na meia-laje, não muito longe dali. Amanda veste com dificuldade o surrado vestidinho florido de chita barata e também desce correndo para o trabalho. Ela está bem acima do peso, com seu corpinho nem de criança, nem de mulher.

Sabia, moço, que depressão também engorda? diz a menina de vozinha rouca.

Há um mês, exatamente no dia em que fazia treze anos, Amanda perdeu a mãe, que também trabalhava de ambulante no trânsito. Atropelada. O enterro foi numa segunda bem cedinho e no mesmo dia, depois do almoço, ela já estava no batente:

Ônibus das quinze pras seis da manhã. Maior sufoco. Mais de quatro reais somente para atravessar o túnel, enquanto o dia começa a clarear. E já faz um calor.

Seis e cinco, Mauro assume seu posto perto das figueiras do canal. Estica um olhar pro outro lado da pista expressa e faz um breve aceno de mão para a “colega” do outro lado da rua. Amanda, rosto compenetrado, responde de longe sem interromper o trabalho:

Compra chiclete, moço, compra pra me ajudar.  Pede a pequenina através da janela de vidro fechada do automóvel.

O calor aumenta e a manhã se arrasta com a fila dos carros travados no engarrafamento. E a pratinha começa a “pingar” bem devagar. Um real aqui, uma moedinha ali…

Oito da manhã: duas horas de batente e Amanda já fez, tirando o custo, dois reais e cinquenta centavos. Mauro, mais fogoso na cobertura da sua área, já soma 9,40. O dia promete.

O que atrapalha muito é o ar condicionado dos carros, diz Mauro.

Com esse calor o cara não baixa o vidro e fica difícil conversar, entabular a negociação… dia desses eu tava apurado, precisando levar uma grana pra comprar remédio pra dor de dente da minha mãe, que tinha passado a noite em claro. Tava chovendo e com chuva a coisa complica, ninguém abre o vidro de jeito nenhum. Eu tava precisando de mais 19 reais de qualquer jeito pra completar o preço do remédio e nada! Quando a noite foi chegando e o desespero aumentando, eu dei umas batidinhas no vidro de um dos carros pra ver se o cara abria, se pelo menos falava comigo. Abriu sim, só que com uma pistola na mão que botou bem na minha cara:

“Se manda, senão te queimo, vagabundo!”

Corri feito um louco e mesmo depois do carro ter ido embora, meu coração ainda disparava, querendo sair pela boca.

Amanda, que de longe viu a cena, foi se chegando de mansinho, sentou-se do meu lado e, acarinhando meu cabelo, disse: “Calma, Mauro, o homem já foi embora, cagão”.

Ai comecei a chorar, disse Mauro, mas não foi choro de medo, não. Foi um choro de raiva mesmo. Eu acho que foi porque ali, naquele dia, eu aprendi de vez que eu era mesmo um bosta, um zé-ninguém, e que não adiantava nem ir reclamar pro guarda.

Onze da manhã, cinco horas no batente. Trinta e seis graus no termômetro digital. Amanda está com uma fome dos infernos, apertada no vestidinho que parece ainda menor e cola no corpo com o suor. Os pés queimam dentro da sandalinha de sola fina sobre o asfalto em brasa. Conta a “grana” devagar: cinco reais e sessenta centavos.

Mauro levou um novo susto, pois um carrão prateado arrancou pra cima dele quando o sinal abriu e ele precisou dar um pulo de acrobata para não virar manchete. Amanda acena de longe como a dizer: “vamos comer?” e Mauro finge que não vê e nem responde. Injuriado com o cara do carro prateado acabou perdendo a fome.

Onze e quinze. Amanda larga o seu posto e vai sozinha à padaria da esquina. Além da fome, está louca para fazer xixi. Como a grana está curta, compra apenas um refrigerante. O volume do gás carbônico no estômago dá uma sensação de saciedade gostosa, de barriguinha cheia. Depois, vai ao banheiro e, à saída, encosta-se num canto da padaria movimentada, tomada de assalto por um bando de alunos da faculdade. Gente bonita e faladeira.

“As meninas têm cada roupa de moda”, fala consigo mesma.

Acha linda a calça jeans de uma delas, mas depois se conforma: “Não para mim, gorda como uma baleia”. Vai longe nos seus devaneios quando o português dono da padaria dá-lhe um tranco, trazendo-a de volta à realidade:

Se quer mais alguma coisa desembucha. Senão, se manda porque aqui não é estacionamento!

Recolocada na rua, onde vive dois terços de sua vida, Amanda se lembra do trabalho e recrimina-se pelo tempo perdido: “quase quinze minutos, Deus do céu“. Volta correndo ao seu posto, no frenesi do engarrafamento e estica um olhar em direção do canal.

Será que o Mauro comeu alguma coisa? Vai um ‘chicletes’ ai, moço? Compra só pra me ajudar…

Treze horas. Tirando os quinze minutos de ‘almoço’, já são quase sete horas de trabalho sob o sol de estio. Mauro comeu um sanduíche de queijo sentado na calçada, mas, definitivamente, não está de bom humor! Não responde aos acenos de Amanda. Faz um calor dos infernos e agora mesmo é que ninguém abre a janela do carro por causa do ar condicionado.

O faturamento travou e a morraça da tarde apenas começou. A bermuda de tecido sintético de Mauro começa a assar-lhe as partes pudentes e os calcanhares, escapando das meias rotas, começam a grudar na sola do tênis como um bife sobre a chapa quente. “Bife!”, pensa ele, mas depressa desvia o pensamento pra não ficar tendo fantasias. Almoçou o sanduíche frio que trouxe de casa e tá muito bom, pensa consigo mesmo.

Quanto é o chiclete aí, moleque? Pergunta o garotão de dentro do vermelho.

Um é treis, treis é sete, responde Mauro.

Amanda do outro lado da pista, solitária em meio ao fuzuê dos automóveis, atende o chamado de um senhor de boa aparência, terno e gravata impecáveis, que baixou o vidro pra papear com ela:

Onde você mora, menina?

Ali na favela, tio.

Quantos anos você tem?

Treze. Fiz treze no dia que minha mãe morreu…

Quer que eu te leve em casa? pergunta o senhor.

Não senhor, que eu tô trabalhando.

E quanto é que você ganha por dia vendendo esse bagulho ai?

Depende, tio, às veiz 10 real, às veiz vareia

O homem então, depois de uma boa olhadela no guarda de trânsito, murmura entre dentes:

Entra aqui que eu te levo em casa e ainda te dou os dez reais por fora! Não carece mais de trabalhar hoje…

Não vou não senhor, reponde a menina. Minha mãe sempre me dizia pra não entrar em carro de gente que eu não conheço.

Mas ela não vai nem saber, insiste o senhor, enquanto o sinal ameaça abrir.

Saber ela não vai mesmo, porque ela morreu no dia que eu fiz treze anos.

Então, entra aqui, propõe mais uma vez o homem, na iminência da abertura do sinal.

Entro não senhor. Compra um chiclete pra me ajudar, moço? Um é treis, treis é sete… compra, só um, pra me ajudar! Diz sem ser ouvida enquanto o carro arranca, sem mais formalidades.

Dezenove horas. No ponto de onibus quase em frente à faculdade encontram-se, ao final de mais um dia de trabalho, Amanda e Mauro. Somente um olhar e um sorriso seco entre as duas crianças.

Quanto tu feiz? pergunta a menina.

Num é da tua conta, responde Mauro. E tu, quanto feiz?

Quinze real, responde a menina fazendo pose.

Hum, tá de caô, baleia? Quinze real nada!

Amanda abre um sorriso que ilumina o rostinho cansado:

Fiz doze e oitenta, tirando o ‘almoço’.

Fiz melhor que tu. Fiz dezoito, vangloria-se Mauro.

Em pé no onibus lotado, voltam os dois pra casa num silêncio cúmplice.

Esta história se repete todos os dias em milhares de cruzamentos perdidos deste Brasil de tanta exclusão. Amanda e Mauro estarão lá de novo amanhã bem cedinho, torcendo para não chover, pra não fazer muito calor, pro sapato não machucar, pra que a fome seja pouca, pra que a cabeça não doa e, principalmente, para que a ‘féria’ seja boa.

Um dia eu abaixei o vidro do meu carro e perguntei ao Mauro:

Se tu ganhasses na loteria, o que querias pra ti?

E o menino respondeu de pronto, sem pestanejar:

Eu voltava a estudar, tio. Porque eu gosto memo é de escola!

Foto: Robert Zuckerman

*Antonio Veronese é um pintor ítalo-brasileiro que se divide entre o Brasil e a França. É autor de obras como ‘Tensão no Campo’ ( Congresso Nacional); ‘Famine’ (FAO, Roma) e ‘Save the Children’ (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com mais de 70 exposições individuais em todo o mundo, Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

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