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Saúde e nutrição com Clayton Camargos: gordos e mortos de fome

Paradoxo entre a fome e a obesidade constitui uma das contradições mais agudas da contemporaneidade

Enquanto milhões de brasileiros enfrentam a fome – invisível, crônica, envergonhada -, cresce o número de corpos obesos, adoecidos por alimentos ultraprocessados e escolhas compulsivas. Este paradoxo revela não um fracasso individual, mas uma falência coletiva: da política, da indústria, da ética. Este é um retrato do Brasil que engorda sem ser nutrido, que ainda morre de fome mesmo diante dos excessos alimentares.

A geometria da fome e do excesso de comida

Vivemos um tempo estranho, em que o corpo faminto e o corpo obeso se encontram na mesma estatística de miséria. O paradoxo entre a fome e a obesidade constitui uma das contradições mais agudas da contemporaneidade. De um lado, milhões de pessoas não têm o que comer. De outro, milhões padecem por comer demais – ou pior, por comer mal.

Segundo o relatório das Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em 2024, mais de 700 milhões de pessoas passaram fome no mundo em 2023 – cerca de 9% da população global. Enquanto isso, estima-se que mais de 2 bilhões de adultos portam sobrepeso ou obesidade, com projeções indicando que metade da população mundial poderá estar nessa condição até 2050. A contradição não é apenas nutricional: é geopolítica, econômica e ética.

Mapas que não se tocam, mas se cruzam

O Mapa da Fome da ONU destaca a África Subsaariana, o Sul da Ásia e partes da América Latina como epicentros da desnutrição. O Mapa da Obesidade, por sua vez, aponta os Estados Unidos, o México e países do Golfo Pérsico como os mais acometidos pela epidemia do excesso.

Mas entre eles há uma área interseccional silenciosa: os países de renda média, como o Brasil, enfrentam a chamada “dupla carga da má nutrição” – fome estrutural coexistindo com o avanço alarmante da obesidade. O contraste é cruel: onde antes se morria de inanição, hoje se morre de diabetes tipo 2.

O Brasil que engorda e que esvazia

A trajetória brasileira entre a fome e a obesidade é marcada por choques históricos, políticos e sociais. Nos anos 1940, o médico e geógrafo Josué de Castro denunciava, em Geografia da Fome, a existência de zonas de fome” – áreas do território nacional estruturalmente privadas de acesso digno à alimentação. Seu diagnóstico, infelizmente, continua atual.

Mais tarde, o antropólogo Luís da Câmara Cascudo, em História da Alimentação no Brasil, nos lembrou que nossa cozinha é, sobretudo, uma memória de sobrevivência – construída entre escassez e improviso, sabor e resignação. Da rapadura ao arroz branco, a alimentação brasileira sempre dançou entre a tradição e a penúria.

Rankings e realidades

Hoje, o Brasil ocupa a 33ª posição no Mapa da Fome, com índice considerado baixo”, mas ainda presente. Em termos de obesidade, o país aparece em 65º lugar, com 25% da população obesa – e crescendo.

Um relatório recente aponta que, mantidas as tendências atuais, até 2044, 48% dos adultos brasileiros terão obesidade, e outros 27% estarão com sobrepeso, totalizando 75% da população adulta portadora de excesso ponderal. Ao mesmo tempo, crianças continuam morrendo por desnutrição: entre janeiro e maio de 2024, foram mais de 2 mil internações por desnutrição infantil no Sistema único de Saúde (SUS). A contradição se repete: morremos de menos e de mais – às vezes, ao mesmo tempo.

Da multimistura ao ultraprocessado

Nos anos 1990, nomes como o sociólogo Betinho e a pediatra Zilda Arns reacenderam a esperança de um Brasil mais nutrido. Betinho, com sua Ação da Cidadania, mobilizou o país contra a fome. Zilda, na Pastoral da Criança, com a multimistura – pó nutritivo feito de farelos, sementes e folhas – salvou milhares de crianças da desnutrição. Era o combate à fome com ciência e afeto.

Hoje, o desafio mudou de forma. O inimigo não é apenas a ausência de comida, mas a presença invasiva de alimentos ultraprocessados – onipresentes, baratos, hipersaborizados, empacotados em cores vibrantes e promessas vazias. Eles representam uma nova forma de violência alimentar, silenciosa e institucionalizada.

A entrada desses produtos no Brasil, a partir dos anos 1990, coincidiu com a liberalização de mercados e a urbanização acelerada. Esses itens são caracterizados por altos teores de açúcares, gorduras e sódio, além de múltiplos aditivos químico. Hoje, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 18,4% das calorias ingeridas pelos brasileiros vêm de ultraprocessados. O preço é pago com hipertensão, obesidade infantil, cânceres e uma cadeia de sofrimento evitável.

Regiões do excesso, regiões da carência

O mapa interno da fome no Brasil aponta o Norte e o Nordeste como as geografias mais afetadas pela insegurança alimentar. Já os índices de sobrepeso e obesidade predominam no Sudeste, Sul e Centro-Oeste – onde o consumo de ultraprocessados é maior. O perfil do brasileiro sob insegurança alimentar é do sexo feminino (59,4%), com idade inferior a 65 anos (97%), preto ou pardo (69,7%), sem instrução ou com ensino fundamental incompleto (67,4%), com predomínio de residências alugadas ou sem teto (95%), e com rendimento domiciliar per capita inferior a meio salário-mínimo (50,9%). Isto é: mulher, jovem, preta, norte-nordestina, analfabeta, sem residência própria e pobre.

Mas essas fronteiras não são fixas. A fome cresce também nas periferias das grandes cidades, e a obesidade avança nos interiores empobrecidos. Ambas caminham juntas onde falta política pública, educação alimentar, renda digna e acesso a comida de verdade.

O custo do que não se come, e do que se come demais

Estudos mostram que a fome custa caro: afeta a aprendizagem, reduz a produtividade e perpetua a pobreza. No entanto, a obesidade custa ainda mais: em internações, medicações e incapacidades laborais. O sistema de saúde gasta bilhões com doenças crônicas associadas ao excesso de peso.

Um estudo do Ministério da Saúde com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), em 2019, estimou que as doenças associadas ao excesso de peso custaram ao SUS cerca de R$ 1,4 bilhão por ano – número subestimado, pois não incluiu despesas privadas e indiretas. E continuará gastando, se nada mudar.

A fome mata cedo. A desnutrição grave pode matar uma criança em semanas. De outra parte, a obesidade mata devagar: encurta a vida útil saudável, provoca anos de incapacidade e dependência de medicamentos e tratamentos.

Segundo o estudo Global Burden of Disease (2022), a obesidade responde diretamente por cerca de 5 milhões de mortes anuais no mundo. Pessoas obesas têm menos anos de vida saudável (HALE – Healthy Life Expectancy) e vivem mais tempo com morbidades incapacitantes.

Estudos recentes indicam que, no Brasil, em 2019, os custos associados ao sobrepeso e à obesidade corresponderam a aproximadamente 2,1% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Projeções apontam que, mantidas as tendências atuais, esses custos podem alcançar 4,66% do PIB até 2060.  

Especificamente, em 2019, o SUS destinou cerca de R$ 1,5 bilhão ao tratamento de doenças relacionadas ao excesso de peso, representando 22% dos gastos diretos com doenças crônicas não transmissíveis no país.

Enquanto a fome compromete o presente e perpetua a desigualdade, a obesidade compromete o futuro e mina a sustentabilidade do sistema de saúde, da economia e da longevidade com anos de vida com qualidade. Ambas são faces da má nutrição e ambas devem ser combatidas – mas hoje, a obesidade representa um maior ônus econômico e sanitário para o país, sem dúvida.

O futuro, portanto, exige uma política pública robusta, que vá além da assistência pontual. É preciso regular a indústria alimentícia, taxar ultraprocessados, subsidiar alimentos frescos, garantir merenda escolar saudável, e valorizar a agricultura familiar. A comida precisa voltar a ser o que é: alimento, e não produto.

Entre o pão e o aço, ainda escolhemos a ferrugem

A travessia entre a fome e a obesidade é, obliquamente, uma cicatriz aberta na pele do mundo – e no Brasil, ela sangra por dentro. No espelho estilhaçado da desigualdade, há quem morra por não ter o que comer, e há quem adoeça por comer o que mata.

Josué de Castro já nos advertia: o problema da fome não é a produção, é a distribuição – e, mais profundamente, a iniquidade. O dilema brasileiro não é o dilema entre o pão e o aço, é o dilema entre a vida e a morte”, escreveu em sua obra seminal. Décadas depois, seu diagnóstico permanece brutalmente nupérrimo. A fome mudou de roupa, mas não de endereço; as zonas de miséria ainda se espalham pelas periferias, pelos sertões, pelos interiores esquecidos, aonde o Estado chega tarde – quando chega.

Zilda Arns nos ensinou que salvar uma criança podia começar com uma colher de multimistura. Betinho nos provou que a fome é uma crise ética. Hoje, frente à nova face da insegurança alimentar, é preciso uma (re)pactuação nacional com aproveitamento de alimentos regionais e acessíveis, baixo custo, participação comunitária, educação alimentar e nutricional, e tecnologias sociais replicáveis.

A obesidade, por sua vez, não é opulência: é carência. É o excesso que nasce da falta – de tempo, de acesso, de educação alimentar, de inatividade física, de políticas públicas efetivas. A curva crescente do peso do brasileiro se cruza com a curva descendente da qualidade dos alimentos. E, no centro desse encontro desastroso, está o ultraprocessado: barato, onipresente, sedutor, viciante, disfarçado de refeição.

Porque se nada mudar, continuaremos condenados a esta ironia trágica: morrer de fome com o prato cheio, morrer de excesso por não ter escolha. Gordos e mortos de fome, o Brasil do futuro poderá ser o país que engordou sem nunca ter sido nutrido.

Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.

 

*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.

CRN-1 2970.

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