GPS Brasília comscore

Antonio Veronese: saudades de um Rio que já não há

"Minha crítica é uma forma extremada de amar", diz o colunista
Foto: Freepik

Compartilhe:

Moro fora do Brasil, ausente do meu Rio de Janeiro, há vinte e um anos. Não porque não mais goste de meu país ou porque o tenha esquecido. Mesmo tendo dupla nacionalidade, italiana e brasileira, a terra brasilis é como a tatuagem de um ex-amor que se revê a cada manhã no espelho do toucador.

Caipira do interior de SP, mudei-me para o Rio quando tinha apenas 17 anos, em 1971. Eu já era louco pela cidade à distância. Aluguei em Copacabana um apartamento ‘já-vi-tudo’, como se dizia à época, num prédio ‘balança-mas-não-cai’ que tinha duas portarias: uma dando para a rua Prado Jr. n°48 e outra para avenida Princesa Isabel n°7.

Foi nesses 30m2, com vista lateral para o mar, tendo a saudosa Mônica à tiracolo, que eu descobri um Rio que pulsava em torno de mim. O Rio da Banda do Leme, onde acabei tocando surdo (acreditem se quiserem); o Rio dos ensaios da Portela, com as rodas de samba do lado de fora da quadra; o Rio da Boate Erótica com suas meninas de ‘boa família’; o Rio do Jardim Botânico e da Lagoa, o Rio de Santa Tereza, do Cosme Velho e da velha Lapa… o Rio do Lamas onde eu ia comer o contra-filé a Oswaldo Aranha e tomar cerveja gelada. À época eu queria ser compositor e cheguei mesmo a gravar um compacto duplo que guardo ainda escondido no fundo de um armário, como escondido ficou pra sempre o sonho de fazer música.

Depois de apenas um mês morando na cidade maravilhosa, de dentro do ônibus em que eu ia para o Leblon, vislumbrei sentado à varanda do antigo Bar Veloso ( hoje Garota de Ipanema), ninguém menos do que Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Eu, que tocava um violãozinho assim-assim por causa dele, considerava o maestro o homem mais importante vivo sobre a face da terra. Saltei do onibus, aproximei-me de sua mesa sem acreditar no que via, boquiaberto como quem diante de uma ‘aparição’ da Virgem. Tom, conhecido por sua gentileza e afetuosidade, perguntou se eu queria tomar um chope e foi assim que, pela primeira vez na minha vida, aos dezessete anos, provei de uma bebida alcoólica.

A embriaguez do primeiro chope, somada à produzida por dividir uma mesa com Tom, foi a minha ‘debutancia’ na efervescência cultural do Rio de então. Daí para os jantares no Antonio’s do Leblon, restaurante do saudoso Manolo, foi um pulo e a possibilidade de ‘côtoyer’ Tom, Vinicius, Chico, Ronaldo Bôscoli, Tarso de Castro… eu, ainda quase menino, ficava de ‘aluno ouvinte’, degustando a verve dessas feras inesquecíveis.

Depois veio o Plataforma de Alberico Campana, onde eu sempre dava um jeito de sentar-me à boa mesa e almoçar ao lado de Tom, do sempre mau humorado José Lewgoy, de Miguelzinho Faria e até de Aluísio de Oliveira que um dia, delicadamente, disse a Tom que achava sua gravação recente de Facinated Rhythm de Gershwin estava um pouco “acelerada”. Ou ainda testemunhar cenas inesquecíveis como aquela em que Tom interpelou Luma de Oliveira, que vinha de ser escolhida pela revista Playboy ‘a mulher da década’: não concordo com isso, disse-lhe Tom. “Você não é a mulher da década, você é a mulher do século”, o que fez brotar um sorriso orgástico no rosto da linda mulher.

Que saudade deste Rio em que se podia, sem correr risco de morte, andar pelas madrugadas de Copacabana e encontrar o grande Orlando Silva comendo um hambúrguer numa lanchonete ao lado da praça do Lido. Além disso, o Rio era a cidade-musa da Bossa Nova, essa música que atravessou a galope todas as fronteiras do planeta, sinonimo de sofisticação e genialidade, e que mudou para sempre a imagem do Brasil aos olhos do mundo: “Rio que mora no mar, sorrio pro meu Rio que tem no seu mar, lindas flores que nascem morenas em jardins de sal” escrevia o genial Ronaldo Bôscoli, uma panfletagem estética definitiva do Rio com um vanguardismo de Demoiselles D’Avignon de Picasso e a leveza d’um móbile de Calder.

Este Rio não mais existe. Começou a morrer nos anos 70/80 , como preconizou Vinicius, na sua famosa Carta a Tom:

“Lembra que tempo feliz,
Ai, que saudade
Ipanema era só felicidade
Era como se o amor doesse em paz
Nossa famosa garota nem sabia
A que ponto a cidade turvaria
Esse Rio de amor, que se perdeu”

Esse Rio de amor que se perdeu!

Em reação a essa dolorosa degradação da cidade que tanto amei, fiz, em 1990, na antiga Galeria IDEA de Anita Schwartz, a minha primeira exposição individual que se chamou ‘Tensão no Rio’; uma tentativa de denunciar o drama que se instalara na antiga capital federal, a nossa cidade maravilhosa. O catálogo desta exposição, que o tempo transformou em documento, foi escrito por ninguém menos que o próprio Tom Jobim (quem diria ?!), talvez a primeira pessoa a entender o que eu estava tentando dizer com minha pintura e, mais do que isso, o que o Rio estava a sofrer. Escreveu então o maestro soberano:

“Rio de Janeiro, a parte que Deus fez continua linda, mas a parte dos homens vai mal. A pintura de Antonio Veronese é um registro disso, dessa tensão que se respira nas ruas. É uma apaixonada reação civil à situação em que se encontra a cidade que ele ama, que nos amamos. O Rio é a inspiração de Veronese e, mais do que isso, é a provocação da qual resulta sua pintura. Nela há os rostos que protagonizam o que Veronese chama de guerra civil carioca. Mas há também mulheres bonitas que eu, fora um rapaz solteiro, gostaria de namorar” (Tom Jobim, Rio 1990).

Por causa deste texto, costumo dizer que meu titulo de cidadão carioca foi concedido por ninguém menos que Tom Jobim.

Mas o tempo passou e o inimaginável aconteceu. Brutalizado pela violência cotidiana, pela truculência policial, submisso à milícia e subjugado pelo medo, esquecido de seus dias de glória, desatento à sua história e tradição, empobrecido sistematicamente pela influência negativa da televisão, que impôs mediocridades como essa ‘sertanejictite’ com seus ídolos chinfrins e sem a elegância da antiga tribo joão-gilberteana, o Rio esqueceu-se de si mesmo e hoje é sombra de “um passado que foi tão feliz”, como diria Dolores Duran. Um espectro do que foi um dia, terra de cultura e poesia, centro do pensamento nacional. Por isso parti, como quem abandona amando ainda, com o coração apertado e a saudade de um Rio que já não há.

 

Foto: Robert Zuckerman

*Antonio Veronese é um pintor ítalo-brasileiro que se divide entre o Brasil e a França. É autor de obras como ‘Tensão no Campo’ ( Congresso Nacional); ‘Famine’ (FAO, Roma) e ‘Save the Children’ (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com mais de 70 exposições individuais em todo o mundo, Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.