Alimentar-se é uma das ações mais instintivas da vida. Todo ser vivo, dos organismos unicelulares aos mais complexos, sobrevive a partir da necessidade de se alimentar. Comer é uma resposta ao chamado vital da existência. Não há desejo, projeto, linguagem ou cultura que preceda essa urgência, a fome é a voz primária da vida. E mais do que isso, o alimento é o propósito que move, orienta e estrutura a condição da continuidade. A busca por alimento é, em si, uma afirmação da vontade de viver.
Nos seres humanos, essa função biológica tem ainda uma densidade simbólica. Comer não é apenas manter o corpo funcionando, é também criar vínculo, celebrar afetos, marcar o tempo. A alimentação está presente na aurora da vida, no peito que alimenta o recém-nascido, nas refeições que estruturam os dias, nas despedidas, nos lutos e nos encontros. É no ato de se alimentar que o humano reconhece o pertencimento, o ritmo, a permanência. Comer ancora a existência.
Quando essa experiência essencial se converte em dor, controle, punição ou compulsão, rompe-se algo central. Os transtornos alimentares não representam apenas uma alteração de comportamento, mas uma fratura na relação entre o instinto e o existir. A anorexia nervosa, a bulimia e o transtorno de compulsão alimentar não são questões estéticas, nem fraquezas morais. São doenças mentais graves, complexas, que podem comprometer não apenas a saúde física e psíquica, mas também a vida em sua potência mais básica, a de continuar existindo.
No dia 2 de junho, o mundo marca o Dia Mundial de Conscientização sobre os Transtornos Alimentares. Não é uma data simbólica, é um chamamento clínico e ético. É preciso reconhecer os sinais de um sofrimento que, na maioria das vezes, se esconde por trás de corpos que “funcionam”, de rotinas que disfarçam a dor, e de uma sociedade que normaliza condutas adoecidas em nome de disciplina ou beleza.
A anorexia, por exemplo, é uma das condições psiquiátricas com maior letalidade. Em estágios avançados, o corpo se recusa a responder, a fome desaparece, e a vida entra em colapso. Quando a alimentação voluntária já não é possível, a internação se torna inevitável. E muitas vezes, o tratamento exige nutrição por vias não orais, porque o organismo já não sustenta mais sozinho a própria permanência. Trata-se de preservar a vida contra a recusa do próprio corpo.
Na bulimia, há uma oscilação entre descontrole e punição. Episódios de ingestão alimentar são seguidos por atitudes desesperadas de desfazer o que foi consumido, vômito autoinduzido, uso abusivo de laxantes ou diuréticos, jejuns prolongados e, muitas vezes, excesso de atividade física com o objetivo de expurgar o que foi ingerido. É como se o corpo fosse forçado a “corrigir” o prazer, um castigo físico imposto em nome de uma culpa insustentável. Lesões nos dentes, na garganta, nas mãos, alterações hidroeletrolíticas, fadiga extrema. Um corpo que já não recebe e aceita, só devolve, só responde com agressão. Porque para quem sofre, o prazer de comer vira ameaça, e a ameaça exige punição. É um ciclo que esvazia o sujeito, física e emocionalmente.
O transtorno de compulsão alimentar é, muitas vezes, ocultado. Mas os danos são reais. Ingerir grandes quantidades de alimento em pouco tempo, sem controle, sem fome, muitas vezes escondido, em silêncio. Depois, o peso evidente da vergonha. A culpa que paralisa e isola. A repetição que exaure. É uma tentativa confusa de preencher com comida o que falta em outros territórios da vida; afeto, segurança, sentido. No Brasil, a caracterização clínica da compulsão alimentar como transtorno específico só foi consolidada recentemente, e sua prevalência vem crescendo de forma preocupante.
O filme A Baleia, vencedor do Oscar, escancarou essa dimensão de forma sensível e brutal. O personagem vivido por Brendan Fraser expõe uma verdade não tão óbvia: muitas pessoas não comem por prazer, mas por dor. Não comem para viver, comem para suportar. A obesidade extrema ali retratada não é desleixo, é sofrimento, é angústia. É o retrato de quem já não consegue cuidar de si, porque tudo já foi devastado antes. Muitos se reconheceram naquela narrativa, mas ainda não conseguiram elaborar sua própria relação com o alimento.
O tratamento dos transtornos alimentares é, por definição, multi e interdisciplinar e altamente especializado. Psiquiatras, psicólogos, nutricionistas, nutrólogos, clínicos, equipe de enfermagem e familiares precisam atuar juntos. Não se trata de reeducar o paladar, trata-se de resgatar o desejo de estar vivo. Exige paciência, técnica, escuta especializada, vigilância e humanidade. Mulheres continuam sendo as mais acometidas por esses quadros, e os diagnósticos entre adolescentes têm crescido de forma significativa, especialmente nas últimas décadas. No Brasil, os estudos sistematizados sobre esses transtornos começaram há cerca de 40 anos, e ainda estamos longe de entender plenamente sua complexidade.
O alimento não deveria ser instrumento de autoviolência. Ele existe para nutrir, sustentar, integrar. Por isso, ao menor sinal de sofrimento em relação ao corpo, ao comer, às escolhas alimentares ou à culpa que se instala após o ato de se alimentar, é fundamental buscar ajuda. Não espere essa condição se estabeleça de forma irreversível. Um médico psiquiatra qualificado é o profissional indicado para conduzir o diagnóstico e o tratamento adequado, garantindo que não haja avanço, não se agrave e, sobretudo, não silencie a própria vida. Se precisar, peça ajuda!
*Antônio Geraldo da Silva é médico formado pela Faculdade de Medicina na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. É psiquiatra pelo convênio HSVP/SES – HUB/UnB. É doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – Portugal e possui Pós-Doutorado em Medicina Molecular pela Faculdade de Medicina da UFMG.
Entre 2018 e 2020, foi Presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina – APAL. Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Diretor Clínico do IPAGE – Instituto de Psiquiatria Antônio Geraldo e Presidente do IGV – Instituto Gestão e Vida. Associate Editor for Public Affairs do Brazilian Journal of Psychiatry – BJP. Editor sênior da revista Debates em Psiquiatria. Review Editor da Frontiers. Acadêmico da Academia de Medicina de Brasília. Acadêmico Correspondente da Academia de Medicina de Minas Gerais.