É noite de sexta-feira, calorento 10 de fevereiro. Na rua, os blocos mais adiantados sopram a folia na porta. Na rede ao lado, o Carnaval não sua, não canta, não mexe. Tem sabor (e cor) de gin tônica, mas postura de sobriedade. Vende, barganha, compra olhares com cliques e comercializa um sonho de uma noite que, mais que Shakespeare, parece escrita por George Orwell.
Uma nova edição do Baile da Vogue chegou, representando não apenas uma virada de era nas relações homem-moda-tenologia, mas também esse jeito muito único de se fazer Carnaval na década de 2020.
Sediado entre as paredes do **histórico** _Copacabana Palace_, o que um dia foi um encontro envolto pelo allure do mistério, com portas fechadas e um dedo indicador sobre os lábios, hoje se descobre como um _reality show_ em alta resolução, de _stories_ e _lives_ e conteúdo para dar e vender.
A impenetrabilidade que já causou tanto fascínio perde o posto para elaboradas estratégias de _marketing_, cliques, curtidas, marcações, posts colaborados, patrocínios, influencers… Um **jardim encantado** que floresce em conteúdo e _hashtags_. E quer saber? Enquanto havia beleza no ‘_mystique_’ do festejo pré-boom virtual, o modelo atual possui algo quiçá mais relevante pra época: **democracia e diversidade**.
O ingresso, certa vez cobiçado **ticket de ouro** pessoal e intransferível, era apresentado apenas aos ricos e famosos, tradicionalmente influentes. Nas últimas edições, rumores de entradas comercializadas por R$ 3 mil (ou mais) cravaram uma **rachadura** na aura blindada do encontro, que hoje pode ser acessado por múltiplas vias, por múltiplas pessoas.
Se o mundo já se tornou uma grande multitela, perceber esse movimento modificando espaços antes vistos como ‘ultraexclusivos’ é não somente um reflexo da “vida como ela é” (citando Nelson Rodrigues), como ainda uma porta para uma sociedade que prioriza **excelência acima de berço**, que busca **gente de toda cor**, alcança **valor estético** em todas as coisas e que, fatigada do desregramento dos _Anos Loucos_, já dominou a arte de uma noitada bem curtida e, agora, preocupa-se em criar imagens, momentos e _looks_ que caiam sobre a história como verdadeiras **performances de arte** (Sabrina Sato em sua produção a lá Midsommar, por exemplo, não é algo fácil de se esquecer).
Da concepção de uma temática que inspire à idealização de looks que beiram a **Alta Costura**, cada pedaço do processo restaura a afinidade do ser humano com a imaginação, a criação, a artesania e, acima de tudo, o sonho. Afinal, entre **guerras e inflações, terrorismo e violência**, sonhar com animais falantes e vestir-se de **flore**s é um escapismo que infelizmente nem todos podem viver em carne — mas podem acompanhar pela **tela do celular**.
Podem delirar com o fictício reino de Titânia, de **fadas e rainhas**, ou com o possivelmente mais-fantástico-ainda universo das _megainfluencers_, de **mimos e de publis.**
O ‘fantasiar-se’ é o mais próximo que se consegue chegar da inocente ignorância de ser criança novamente, e até o ato de afundar-se no sofá, criticando e **rankeando os looks desfilados**, (atividade agridoce que mistura o mel de se sentir superior com o amargor do ‘não fui convidado’) é, por si, uma breve viagem para uma terra tão-tão-distante do ‘mundo real’. Entre convidados e organizadores, patrocinadores e espectadores, todos têm algo a tirar: **se não é dinheiro, é engajamento, se não é engajamento, é distração**.
Pagando bem: de Antártica Tônica a Eudora, passando por OPI e Stella Artois, empresas se aliaram a fortes nomes para impactar multiplicar a exposição visual no Baile da Vogue
E entre gente que crê que o _close_ **matou o Carnaval**, e gente que prega o **renascer tradicionalista**das festas de salão, um aviso: o ‘carna’ de fogo e de sal vai sempre existir, assim como aquele de poses e cliques.
O **baile da rua**, devasso, molhado de suor e de bebida derramada, o axé, o funk e o samba, a marchinha antiga e o hit novidade… ele segue para quem gosta de segui-lo. Vai ser vivido em Modo Avião, sem sacar o celular com medo de perdê-lo na folia. Inalterada, essa farra corre no **sangue brasileiro**, é da **nossa gente, da nossa cultura, do nosso jeito**.
Esse Carnaval de palácios e porcelanas, de brilhos, de _flashes_ e do ‘coloca um filtro antes de postar!’, é uma compra não reembolsável feita no crédito da modernidade, da **revolução digital da indústria**, do mundo que criamos sem entender o que estava sendo criado.
Sorte a nossa que a prateleira goza de espaço para ambos. **Para noites de Vogue e para noites de ‘varzea’**.
_Fotos: Reprodução Instagram_
