Há algo de visceral, de irredutivelmente brasileiro, na dupla que se deita sobre o prato e alimenta o corpo e a memória: arroz com feijão. Simples na aparência e monumental no significado, esse par não se deixa aprisionar pela lógica utilitarista das calorias ou pelo reducionismo de dietas da moda. É o casamento da ciência com a poesia.
É alimento ou metáfora?
Claude Lévi-Strauss, em O cru e o cozido (1964), primeiro volume das Mitológicas, propõe que a passagem do cru ao cozido não é apenas um ato culinário, mas o gesto fundador da cultura: o momento em que a natureza é transfigurada em linguagem simbólica.
Nesse sentido, o arroz com feijão, além de alimento, torna-se narrativa coletiva, isto é, rito de pertencimento e senha de brasilidade, em que o cozido não só nutre o corpo, mas também confirma identidades.
No imaginário popular, a expressão se tornou essencialidade: “arroz com feijão” é o básico que basta a partir do chão que sustenta. É prato de rei, de operário, da casa dos pais da gente e de restaurante popular. Atravessou a música, a literatura, a publicidade, o futebol e o discurso político.
É, sobretudo, comida de verdade, no sentido proposto pelo Guia Alimentar para a População Brasileira: alimento in natura ou minimamente processado, preparado em casa e partilhado em mesa coletiva.
O par não nasceu de decreto ou de manual técnico. O arroz aportou da Ásia, adaptou-se aos trópicos, multiplicou-se nos engenhos e lavouras. O feijão já era americano, presença milenar nas roças indígenas. A panela colonial os reuniu, entrelaçando saberes dos povos originários, africanos e europeus.
Da mistura nasceram pratos simbólicos: o feijão tropeiro dos bandeirantes, o baião de dois dos sertões nordestinos, o tutu das Minas Gerais, a feijoada dos encontros cariocas e muito mais. Sempre sob a escuderia do arroz, seu fiel guardrail.
A folia cantada pelas Frenéticas em O Preto que Satisfaz, na abertura da novela Feijão Maravilha exibida originalmente pela TV Globo em 1979, resume esse caldo operístico tropical: “dez entre dez brasileiros elegem feijão! Puro, com pão, com arroz, com farinha ou com macarrão […] Feijão, feijão, feijão, tchan!”
Cada colherada traz, portanto, a história de uma gente que se inventa na mestiçagem. Comer arroz com feijão é inscrever-se nessa ancestralidade celebrando o plural que não se dissolveu apesar da escravidão, da fome e das tentativas de embranquecer a mesa brasileira.
A ciência moderna, por sua vez, apenas confirma o que a sabedoria popular sempre manifestou: combinados, arroz e feijão instituem uma sinfonia nutricional perfeita.
O arroz é rico em carboidratos e pobre em lisina (um aminoácido essencial), enquanto o feijão oferece proteínas vegetais de melhor qualidade e é rico em lisina, mas limitado em metionina e cisteína, presentes no arroz. Juntos, fornecem proteínas de alto valor biológico. Além disso, oferecem fibras, ferro, magnésio, vitaminas do complexo B e baixo teor de gordura.
100 g (50 g de arroz e 50 g de feijão) tem 141 calorias e 6 g de proteínas, que não são acaso e sim alquimia bioquímica. É equilíbrio nutricional. Isso é inexorável. Claro, se compararmos com 100 g de patinho bovino moído e cozido teremos 27 g de proteínas e 210 calorias, isto é, a carne fornece cerca de 4 a 5 vezes mais proteína por grama em relação à mistura arroz com feijão.
De outra parte, crucialmente, apesar de ter menos proteína absoluta, a combinação arroz + feijão oferece, além dos benefícios nutricionais retro elencados, melhor perfil metabólico, de custo e impacto ambiental.
Já a carne bovina concentra proteína de altíssima densidade em contraste ao maior valor energético associado a gordura saturada, que se encontra com maiores riscos cardiometabólicos e câncer, sobretudo, quando consumida em excesso.
E há evidência robusta de que quem cultiva o hábito de arroz e feijão vive melhor.
Estudos recentes mostram que essa tradição alimentar está associada a menores taxas de obesidade, melhor controle glicêmico, perfis lipídicos mais saudáveis e redução do risco cardiovascular.
E mais: pesquisas brasileiras de 2025 confirmam que quanto maior o consumo de arroz com feijão, menor a inadequação nutricional e menor o impacto ambiental, isto é, menos carbono emitido e menos água desperdiçada.
Não basta quantificar nutrientes: compreender o arroz com feijão exige também medir aquilo que não cabe em tabelas.
Expandamos nossa percepção. Quais as emoções que um prato de arroz com feijão desperta em você ao sentar-se à mesa para almoçar?
Reflita sobre isso. Comida é emoção: o ato de comer ativa circuitos neurobiológicos de prazer, memória e afeto.
Estudos de neurociência demonstram que alimentos familiares e culturalmente significativos estimulam o sistema dopaminérgico de recompensa, associando o sabor a experiências de conforto e pertencimento.
A psicologia cultural reforça: o que comemos está imbricado em identidades e memórias, evocando laços familiares e sociais que modulam até mesmo a percepção do paladar.
No Brasil, pesquisas mostram que preparações tradicionais como o arroz com feijão geram não só saciedade física, mas também sensação de bem-estar e vínculo comunitário.
Eis o milagre! O prato da infância é também dieta sustentável para o porvir.
É um marcador simbólico de justiça social: quando falta, denuncia carestia e iniquidade. Quando chega caro à feira, escancara o abismo entre o direito humano à alimentação e o apartheid nutricional.
Os dados são claros: entre 2007 e 2017, o consumo regular de feijão caiu de 67,5% para 59,5% dos brasileiros.
O avanço dos ultraprocessados, absurdamente mais sedutores no marketing, corrói a tradição e impõe doenças. Não se trata apenas de gosto: é disputa de poder. Meus caros, é a biopolítica no prato.
Em cada porção está a criança que corre ao recreio, o operário que sustenta a jornada, a mãe que reparte o pouco e o avô que recorda sabores da roça.
É momento de revelar a mesa como trincheira, transformar o garfo em bandeira e compreender que a luta pelo alimento é sentido da vida.
Portanto, ergamos a voz: tirem as mãos do nosso arroz com feijão! O que defendemos não é exclusivamente uma dupla de grãos, mas o direito a alimentar-se com dignidade. O prato nacional não pode se tornar uma lembrança nostálgica, mas sim futuro vivo e democrático.
Quem tira o arroz com feijão da boca do povo não rouba apenas calorias: extorque sua alteridade.
Alimentação saudável é força e proteção. Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.