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Theodora Zaccara: A beleza que obedece: nudez, censura e o corpo feminino na passarela do pudor

Afinal, a moda é mostrar ou esconder? Diante de turbulências políticas e hipocrisias sociais, a coluna reflete sobre paradoxos

No terceiro volume de sua tetralogia napolitana, Elena Ferrante, através de sua heroína homônima, Elena Greco, desenvolve um pensamento à época radical: “Talvez haja algo errado nessa vontade dos homens de nos instruir; na época eu era uma menina e não percebia que, naquele seu desejo de me transformar, estava a prova de que não gostava de mim tal como eu era, queria que eu fosse outra, ou melhor, não desejava simplesmente uma mulher, mas uma mulher como ele imaginava que poderia ser se tivesse nascido mulher”. Ambientado na revolucionada Itália das décadas de 1960-1970, História de Quem Foge e de Quem Fica não é, por assim dizer, um livro feminista (podem descansar, tradicionalistas!), mas pega emprestado noções e ideias de algumas avós, mães e tias do movimento — Bell Hooks, Hèléne Cixous, Virginia Woolf, Luce Irigaray. Mulheres de outros tempos, que por muito pouca coisa se escandalizaram. Em 2025, todavia, seria natural imaginá-las no mínimo balançadas com o andar da carruagem.

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Kendall Jenner para Stella McCartney, 2023

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Kate Moss para Vivienne Westwood, 1994

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Alexander McQueen, Spring/Summer 2001

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Beth Ditto fotografada por Mertalas para LOVE Magazine, 2008

No início de maio, a organização do Festival de Cinema de Cannes anunciou a proibição completa de trajes com elementos de nudez. “Por motivos de decência”, publicou. A nova norma foi justificada com uma cartada legislativa: aprovado em abril de 2021, o Artigo 222-32 do Código Penal francês censura a exposição sexual em espaços públicos não designados (salvo as praias de nudismo e o famoso topless europeu, lógico!). Em resposta à notícia, a galera da moda se tremeu. Transparências e provocações, um dia tão preciosas ao evento como é a baguette à França, se tornaram ‘coisa do passado’ no súbito passar de um clique. Mas “ por que mostrar o corpo é de tamanha relevância numa indústria feita para vesti-lo?”. Ora, a moda dita normas tanto quanto as desafia — ela veste, mas também revela. Ela descobre ao cobrir, desafia sem desfiar.

E além de tudo, o timing é bastante curioso.

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Baú da ‘pouca vergonha’: antes de Chanel levar a fama, Paul Poiret deitou-se na cama. O designer francês foi o primeiro a sugerir uma silhueta livre de espartilhos, que colocava a roupa e pele em contato e delineava as formas naturais do corpo

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Poucos anos depois, a compatrícia Madeleine Vionnet criou o corte em viés, método que força o tecido a abraçar a figura oferecendo um caimento revelador e sensual

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Antes de ser famosamente inventado pelo engenheiro francês Louis Réard, uma versão do biquini como hoje conhecemos já havia sido apresentada em 1946, sob o nome de “Atome”, obra do estilista Jacques Heim

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No início da década de 1960, a britânica Mary Quant escandaliza ao criar a mini-saia, item que logo foi adotada não apenas como símbolo revolucionário dos ‘novos tempos’, mas como artigo de vestuário imperativo no closet de jovens por todo o globo

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Blonde ambition: os icônicos e cônicos seios de Jean Paul Gaultier para Madonna são uma das maiores insígnias fashion e culturais na década de 1980

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Sem pudor nem recato, Tom Ford inaugurou uma nova era de sexualidade e erotismo durante seus 14 anos de reinado na casa Gucci

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Fim de uma era: Bella Hadid veste… Bella Hadid (e Saint Laurent), Cannes, 2024

Paralelo à quebra de uma onda neoconservadora no Ocidente, o embargo configura um de muitos passos rumo à repressão não apenas do corpo, mas da agência do indivíduo sobre o que é se esconde e o que se mostra. E o que tem se visto por aí é uma falta de vergonha imensa.

Cada vez mais condicionada, a beleza feminina segue sendo feita de arma em embates que desejam regulá-la, contê-la e monetizá-la — pois se de uma ponta do espectro homens de cabeça branca mandam no que não tem, o outro lado da balança se desequilibra em hipocrisia, tropeçando num ativismo performático, ‘politicamente correto’, Ozempicado e cheio de falhas, que enche os pulmões pregando “diversidade de corpos” enquanto conta as gramas na própria balança da qual despenca. Será que é possível compreender Simone de Beauvoir com as veias cheias de Monjaro? Eis o paradoxo do feminismo: mostrar ou esconder, não há fuga nem saída. Um perfeito labirinto de camundongos, no qual todos os caminho.

Tempos atrás, quando Donatella Versace foi destronada da grife italiana. Muitos foram os críticos e analistas que apontaram o causo como um indicador do apocalipse insubmisso. Eu revirei os olhos como quem tira sarro: “teoria da conspiração!”, tive certeza. Puxa, por um breve instante me permiti esquecer o quão emaranhada está a moda nos lençóis do poder!

Theodora Zaccara: A beleza que obedece: nudez, censura e o corpo feminino na passarela do pudor

Steven Meisel para Vogue Itália, setembro de 2006

Moda é uma indústria feita de tecido, mas só através do corpo uma roupa consegue ter alma, e graças a muitos de seus revolucionários (gente como Jean Paul-Gaultier, Tom Ford, Rick Owens, a lista é longa) continuamos a quebrar a gaiola de vidro que prende e repreende a autossuficiência da mulher. Helmut Newton erotizou o feminino com ares de noir. Alexander McQueen fez da passarela um ritual de carne e catarse. Os irônicos mamilos de David Roseburry para Schiaparelli questionam a censura da mama, enquanto os corpos nus de Yves Saint Laurent alimentam o diálogo sobre androginía e identidade de gênero. Não se trata de exposição gratuita (ou, ao menos, não deveria), se trata de risco, de crítica, de ruptura — sem isso, não há moda, não há diálogo, não há revolução que sobreviva. “O corpo não é uma coisa, é uma situação: é o nosso entendimento do mundo e o esboço de nosso projeto”, disse Simone de Beauvoir. “A feminilidade é uma prisão. A nudez é a nossa fuga”, completou Virginie Despentes.

Não é só um “peitinho”, porque nunca é só um “peitinho” – é o seio da cultura sendo golpeado de lado a lado.

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