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Sob o Véu de Arrakis: ‘Duna Parte 2’ e o debate sobre moda e tempo

Na sala escura, nem um pio. A pipoca, embalsamando o ar com cheiro de manteiga, é devorada em perfeito silêncio. Vermelho, laranja. Um olhar azulado surfa nas ondas de um mar seco, estéril, arenoso. Repleto de monstros e de beleza.

Há tempos não se senta no cinema e se vê algo tão bonito. No alaranjado do planeta de Arrakis, nos perdemos. Nos olhos de Chani e de Paul, nos achamos. O mundo de Duna é infértil, inóspito, mas brilha feito luz batendo na água.

Paraíso de areia: as cenas desérticas da obra foram filmadas em Budapeste (Foto: Divulgação)

O blockbuster estreou dia desses, mas de cara já cantou: “Duna Parte 2” é o filme do ano, discordem os corajosos! Em matéria de performance, bilheteria e burburinho, o futuro distópico de Frank Herbert, como interpretado pelo diretor Denis Villeneuve, chutou a bola para muito além do gol.

Foi um tiro certo, um divisor de águas, um retravo cultural. Uma odisseia fantasiosa que tem o sabor amargo da atualidade — e um cheiro azedo de “eu avisei”. Tão distante, porém tão irrefutavelmente possível. Que qualidade esse filme tem que faz o imaginário parecer palpável? Pensei muito sobre, e o negócio é que Duna apresenta, desenvolve (e veste!) seus personagens não como heróis, vilões, guerreiros e mocinhas.

Em Duna, vemos pessoas. Com 5 indicações ao Oscar na maleta, Jacqueline West carrega uma pesadíssima bagagem. Formada em História da Arte pela universidade de Berkeley, a stylist caiu de boca no ‘modo pesquisa’ para montar um figurino fiel à estória. Caçou referências nos antigos modos europeus, nas tradições orientais, puxou inspiração dos mais alternados séculos, povos e culturas.

Mais de 4 mil peças de roupa foram desenvolvidas ao longo do projeto, e para conferir o ar orgânico do vestuário, todos os tecidos foram pintados à mão (Foto: Reprodução/Theodora Zaccara)
Dividindo-se em cartelas frias e quentes, a trama discorre sobre o conflito entre a frieza do poder e o calor da natureza humana (Foto: Reprodução/Theodora Zaccara)
A partir de peças importadas de Istambul e do Marrocos, West reciclou e remontou toda a matéria-prima dando vida ao estilo que cunhou como ‘Modieval’: a combinação de moderno e medieval (Foto: Reprodução/Theodora Zaccara)

Os Freemen, etnia nativa do planeta de Arrakis, usam da moda utilitária a seu favor. Combinam tecnológicos tracksuits, pensados para prosperar no calor, com mantos e véus de materiais leves e tons terrosos. Já a Casa Harkonnen, os ‘malvadões’ da saga, exibe carecas e sobrancelhas raspadas, conferindo um visual quase alienígena ao bando. Vestem preto, em texturas lisas e molhadas (uma coisa pra lá de Rick Owens) e têm simpatia pela pouca roupa.

As Bene Gesserit, um matriarcado de ‘sacerdotisas’ indispensável no enredo, se utilizam de largos volumes e tecidos armados. As Madres-superioras ganham longos e achatados chapéus, enquanto aquelas que fazem parte da nobreza se adornam com joias e complexos adereços de cabeça.

De repente, uma trama traçada 10 mil anos à frente do nosso tempo ganha uma textura real, autêntica, tátil. Longe de fantasiar o futuro, o design de Duna busca a verdade que existe no que a gente já viveu. Aquilo que vamos ser só existe a partir daquilo que fomos, e assim, o ‘amanhã’ pode se parecer mais com o ‘ontem’ do que com o ‘hoje’.

Sandwalking: as semanas de moda internacionais já se apropriaram da estética de Arrakis (de cima para baixo, da esquerda para a direita: Dior F/W 24, JW Anderson F/W 24, Schiaparelli F/W 24, Del Core F/W 24, Rick Owens F/W 24, Zimmerman F/W 24, Valentino F/W 24, Comme Des Garçons F/W 24, Saint Laurent F/W 24, Isabel Marant F/W 24 (Foto: Reprodução/Theodora Zaccara)

 

E que conceitos! Passado, o presente e futuro. Entendidos como três irmãos parecidos, mas independentes, sendo que já tivemos prova atrás de prova de que são, efetivamente, a grande bagunça de uma coisa só.

Quanto mais precisa a lupa através da qual enxergamos a história, mais imperfeições encontramos por lá. Piadas que perderam a graça no reprise, artistas celebrados como reis caíram do trono… A ordem do novo milênio não tolera desculpas mal-pedidas, e cada dia que passa fica um pouco mais difícil romantizar esse tempo que, uma hora tão bom, agora se foi.

O presente também não é flor que se cheire. Inflação, genocídio, hormónio no frango, mercúrio no peixe… tá osso. Pra viver aqui, tem gente que aumenta a realidade, distorce, filtra, recorta, edita. Tudo para que os dentes pareçam mais brancos e a vida, mais fácil.

E se o passado causa desencanto e o presente, desgosto, o futuro inspira a desilusão. As calotas vão derreter! A floresta vai sumir! O mundo vai pegar fogo! As previsões exalam pessimismo. Dá pra torcer contra, cruzar os dedos, esperar pelo melhor, só não dá pra discordar. Eu falei que tava osso…

Quando não há refúgio nem no que foi, nem no que é, e nem no que será, recorremos ao que poderia ter sido, e nosso incessante fascínio pelo retrofuturismo (o futuro que não foi) se manifesta na cultura e na arte. Na música, nas roupas, do design, nos filmes… Nós corremos para o cinema, o teatro, a arena mais próxima e escapamos para a um afago de fantasia, perdidos no pungente bálsamo de pipoca e pensando: “poxa, como tá incrível essa balaclava de correntes”.
Passado, presente ou futuro, o sentido da vida é o que é sentido na arte, e o sentido da moda é vestir esse sentimento.

 

*Theodora Zaccara é Jornalista e apaixonada por Moda desde que se entende por gente. Iniciou sua carreira aqui no GPS Lifetime, onde acompanhou diversos eventos e entrevistou figuras icônicas desse universo. Agora, como colunista, tem a missão de trazer para os holofotes as novidades do mundo Fashion de maneira descomplicada.

Theodora Zaccara

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