A novela Vale Tudo, no ar na tela da TV Globo, tem feito mais do que revisitar os dilemas morais do Brasil dos anos 1980: tem jogado sal em feridas que continuam abertas. No capítulo de segunda-feira (7), a personagem Raquel Acioli, esbofeteia a própria filha, Fátima, ao vê-la mentir descaradamente, vestida de noiva, a caminho de um casamento urdido por interesses. O tapa estalou em rede nacional como um grito daqueles que o corpo, às vezes, reprime por educação, mas a alma pede por justiça.
Foi uma catarse de 1988 atualizada para 2025. Quantas “Maria de Fátima” já desejamos esbofetear? Eu tenho uma dúzia que persiste no desejo, mas que não realizo por força civilizacional e de segurança pública, claro.
Há aplausos, e há quem diga que violência nunca se justifica. A claque comenta: “foi necessário”. E assim, sem perceber, valida-se o gesto ancestral do castigo como instrumento pedagógico.
De toda sorte, o que me interessa aqui não é a cena icônica, é o símbolo que ela convoca, e como esse gesto tão físico e visceral é a metáfora perfeita para outro tipo de bofetada que tem se tornado cada vez mais comum: a da estética sobre o corpo.
Quantas vezes você já não ouviu alguém dizer que precisava de um “tapa na cara” para emagrecer? Que precisava “acordar para a vida”? Que queria algo “que chocasse” para mudar o corpo?
O mercado entendeu o recado e respondeu com bofetões mais sofisticados, o tapa virou método: agulhas semanais, dietas punitivas, treinos de autoflagelação, aplicativos que vigiam passos e calorias como sentinelas digitais. A diferença é que agora, ao invés de mãe e filha, quem bate e apanha é a mesma pessoa: você.
Michel Foucault, em sua trajetória sobre o biopoder, nos alerta para os modos como o corpo é domesticado pela norma. Em vez de cárceres e algemas, hoje nos curvamos aos likes. O corpo magro tornou-se sinônimo de mérito. O corpo gordo, falha de caráter. Estamos diante de um processo de moralização metabólica.
A pergunta que ecoa, portanto, não é apenas se o tapa emagrece. A pergunta é: por que acreditamos que o sofrimento é necessário para sermos aceitos?
Da perspectiva biológica, a resposta é direta e sem glamour: não, tapa não emagrece. O que um tapa faz, biologicamente, é acionar o sistema de resposta ao estresse. O hipotálamo dispara uma cascata neuroendócrina: adrenalina, noradrenalina, cortisol. A frequência cardíaca sobe, os músculos se tensionam, a mente entra em alerta. É o mesmo circuito que se acende quando somos perseguidos, criticados ou pressionados, inclusive, por nós mesmos.
Se o estresse é agudo, pontual, o corpo o metaboliza. Mas se torna crônico; como o estresse da culpa alimentar, da gordofobia estrutural, da autocobrança estética, o corpo paga caro. O cortisol elevado desregula a leptina, o hormônio da saciedade. Favorece o acúmulo de gordura visceral, reduz a sensibilidade à insulina, prejudica o sono. Em suma: engorda.
A neurociência mostra, portanto, que quanto mais nos batemos com palavras autodepreciativas, dietas restritivas ou ideais inalcançáveis, menos emagrecemos. E mais nos afastamos de uma relação saudável com o próprio corpo.
Pierre Bourdieu nos lembra que o corpo é também um capital simbólico. O “tapa” estético, portanto, é também um rito de passagem: a marca da obediência à norma. Quando uma mulher diz que precisa sofrer para “entrar no vestido”, ela está, sem saber, encenando o mesmo teatro da Fátima vestida de noiva em Vale Tudo; vestindo-se para um papel que não é seu, mas da expectativa alheia.
E quando alguém aplaude a bofetada do aumento da balança, ou que a seringa promete, talvez esteja apenas aclamando o castigo que internalizou como justiça.
O tapa é normalizado. Ninguém mais precisa levantar a mão. Nós mesmos o fazemos. Todos os dias. Com palavras duras diante do espelho, negando o prazer, homologando dietas que nos tratam como inimigos e tomando remédios que nos prometem perdão.
Vivemos uma religião corporal onde o nutricionista é uma espécie de sacerdote, e o corpo gordo o pecado original. Não à toa o verbo “emagrecer” vem carregado de expiação. “Perder peso” é ganhar valor. “Secar” é tornar-se aceitável. “Detox” é purificar-se do erro. Tudo nos convida ao autoflagelo estético. Como se fôssemos exclusivamente culpados pelo fracasso do nosso corpo.
Da dimensão metabólica, emagrecer não se faz com raiva, e sim com conhecimento. A termogênese, a lipólise, a mobilização de ácidos graxos, todos esses processos dependem de harmonia hormonal, sono adequado, microbiota saudável, alimentação balanceada, e, sobretudo, de uma mente equilibrada.
Neurocientistas, como Robert Sapolsky em seu Why Zebras Don’t Get Ulcers (2004), demonstram como o estresse tóxico sabota o metabolismo. Herman Pontzer, em Burn: The Misunderstood Science of Metabolism (2021), nos lembra que o gasto energético diário é muito menos maleável do que se pensa: dietas restritivas geram adaptações compensatórias no corpo, que diminuem o metabolismo basal.
A obesidade, evidentemente, é uma condição que merece atenção, não romantização. Mas a resposta a ela não está na agressão simbólica ou literal. Não há bofetada que regule a leptina, o hormônio da fome, nem vergonha que aumente massa muscular.
A cura possível, se é que podemos falar em cura, passa pelo amor-próprio que respeita a biologia sem ignorar o contexto. Passa por educação nutricional, acompanhamento médico, psicoterapia, corpo em movimento: pela forma como respeitamos nossos corpos.
Passa, sobretudo, por políticas públicas que rompam o silêncio cúmplice diante de um sistema alimentar corrompido por interesses industriais. Enquanto o ultraprocessado circula livre, travestido de conveniência, sabor e praticidade, a comida de verdade continua sendo um privilégio de classe.
O Estado, ao se omitir na regulação do marketing, na taxação de produtos deletérios ou na rotulagem frontal clara e acessível, age como cúmplice de um modelo que lucra com a doença e penaliza a fome.
É preciso coragem política para enfrentar o lobby das grandes corporações, que patrocinam não só produtos, mas discursos, vendendo ilusão em pacotes comestíveis com selo da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Nenhuma agulha isolada será mais eficaz do que o combate incondicional à indústria da obesidade.
Talvez Raquel, ao esbofetear Fátima, tenha sentido o gosto amargo do que não pôde dizer com palavras. Mas você, que hoje busca a transformação do próprio corpo, pode escolher outro gesto. Não a bofetada. Quando você se olha e, em vez de se agredir, se reconhece. Isso, sim, emagrece. Não o número na balança, mas quando o peso se solta da alma.
Alimentação saudável é força e proteção. Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.