A madrugada de domingo para segunda-feira já se preparava para ceder lugar a um sol invernal quando me vi refletindo sobre a tristeza da viagem definitiva de Preta Gil a partir de um câncer colorretal.
Hoje, ao traçar esse percurso entre o antropogênico e o biológico, conecto ciência e emoção. Este texto é também um afeto editorial: um convite a enxergar no corpo uma promessa de resistência, e na ciência, uma chama de esperança.
O câncer colorretal é uma doença heterogênea do ponto de vista genético e molecular, evoluindo a partir de pólipos adenomatosos ou lesões com alterações progressivas em determinados genes como APC, KRAS, TP53 e instabilidade de microssatélites (MSI).
E de dualidade instalada: temos uma das neoplasias mais prevalentes e preveníveis da atualidade.
Principais fatores de risco modificáveis:
- Dieta rica em carnes vermelhas e processadas, pobre em fibras;
- Sedentarismo;
- Obesidade visceral;
- Consumo de álcool e tabaco;
- Disbiose intestinal e inflamações crônicas.
Fatores não modificáveis:
- Idade > 50 anos;
- Histórico familiar de câncer colorretal ou síndromes hereditárias (ex: Lynch, polipose adenomatosa familiar);
- Doenças inflamatórias intestinais (retocolite ulcerativa, doença de Crohn).
Esse câncer emergiu nas últimas décadas como um espelho implacável do estilo de vida moderno. No Brasil, o Instituto Nacional de Câncer (INCA) projeta cerca de 45.000 novos casos por ano entre 2023–2025.
É o segundo tumor mais incidente entre mulheres e o terceiro entre homens no nosso país. O envelhecimento da população e a carga plural de doenças crônicas coexistentes (diabetes, obesidade, hipertensão etc.), complicam a condução terapêutica.
As disparidades regionais acendem clarões de alerta: no Brasil, o aumento é mais agudo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, reflexo de desigualdades no acesso à prevenção e tratamento.
Segundo o Global Cancer Observatory (GLOBOCAN), projeto desenvolvido pela International Agency for Research on Cancer (IARC), que é uma agência da Organização Mundial de Saúde (OMS): o câncer colorretal, mundialmente, figurava como o terceiro tumor mais incidente em 2023, com quase 2 milhões de casos, e quase um milhão de óbitos. É a segunda principal causa de morte por câncer no mundo.
As taxas de incidência e mortalidade são mais elevadas em países de alta renda, mas com crescimento acelerado em países de renda média e baixa, como Brasil, China, Índia e África do Sul.
Mas este é um percurso que também nos conta sobre escolhas antropogênicas: mudanças alimentares, oferta excessiva de ultraprocessados, sedentarismo crônico, poluentes ambientais, agrotóxicos, plásticos, esteroides-anabolizantes, antibióticos e o deslocamento vertical de uma microbiota antes diversa ganham protagonismo.
Um estudo recente do estadunidense National Cancer Institute (NCI) reforça que dieta equilibrada e exercício regular são escudos na prevenção.
Outro alerta ecoa em análise do, também estadunidense, National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES): boa nutrição e níveis reduzidos de inflamação associam-se a menor risco de câncer. Tais evidências apontam para um elo claro entre o que cultivamos, no prato e no solo da saúde, e o que prospera em nosso organismo.
É nessa órbita que desponta o ensaio clínico CHALLENGE, um monumento científico, aplaudido de pé pelos especialistas em apresentação na Reunião Anual da ASCO 2025 (American Society of Clinical Oncology), em Chicago, Estados Unidos.
O estudo, Structured Exercise after Adjuvant Chemotherapy for Colon Cancer, publicado no New England Journal of Medicine em junho último, envolveu 889 participantes com câncer colorretal ressecado e que concluíram quimioterapia adjuvante, distribuídos em 55 centros de seis países, ao longo de 15 anos.
Os participantes do grupo intervenção realizaram atividades físicas supervisionadas e progressivamente autogeridas durante 3 anos, enquanto o grupo controle recebeu apenas materiais educativos sobre saúde e bem-estar.
A força metodológica do estudo repousa sobre três pilares: aleatorização balanceada, protocolo registrado publicamente (NCT00819208) e um acompanhamento suficientemente longo para maturação dos eventos. Os desfechos são objetivos (recorrência, mortalidade), o que reduz viés de mensuração.
O resultado: redução de 28% no risco de recidiva ou óbito e taxa de sobrevivência livre de doença de 80% contra 74%, no quinto ano. A sobrevida global, no oitavo ano, foi de 90,3% no grupo ativo, ante 83,2% no controle. Eventos adversos musculoesqueléticos em 18,5% no grupo exercício vs. 11,5% no grupo controle.
Esse protocolo, que alternava sessões semanais presenciais com supervisão especializada mensal, evoluindo para encontros remotos e caminhada, natação, musculação, é mais que estatística. É sopro de vida. É trajetória coletivamente forjada. A chantagem do corpo silencioso se desfaz: o indivíduo se torna protagonista ativo da própria cura.
Como toda boa ciência, o ensaio também traz suas lacunas. Não foi utilizada a metodologia GRADE para qualificação da evidência, o que será imprescindível em futuras revisões sistemáticas e diretrizes clínicas. O cegamento de participantes não foi possível, o que pode introduzir viés de desempenho. Também não há menção a análises de custo-efetividade: um passo fundamental para a translação dos achados ao sistema público de saúde, especialmente em contextos de desigualdade estrutural como o brasileiro.
Com efeito, sobre a avaliação GRADE: Embora ensaios clínicos randomizados forneçam, por definição, evidência de alta qualidade, o artigo em tela:
- Não adota o framework GRADE formalmente, ou seja, não há tabelas de avaliação da qualidade da evidência nem análise explícita de imprecisão, consistência, ou risco de viés por domínio (como faria uma revisão).
- O uso de GRADE seria recomendável em guidelines ou revisões, mas não é obrigatório em publicações primárias como esta.
A extrapolação para outros tipos de câncer exige cautela e estudos específicos. Mas nada disso tira o brilho do conteúdo! A matéria-prima é poderosa.
Caríssimos, não falo aqui de cura, mas de coadjuvância terapêutica.
Na mesma direção: o Centro Oncológico Dana‑Farber, em artigo de março de 2025, mostrou que pacientes com câncer de cólon em estádio III que mantiveram níveis elevados de atividade física viviam tanto quanto a população geral; ao passo que quem permanecia inativo apresentava queda de 17 % a 10 % na sobrevida.
Não há roteiro ficcional. A ciência converte movimento em tempo, simples variações no cotidiano tendo impacto tão vital quanto um medicamento experimental. Isso nos leva à ferida emocional e antropológica: como o estilo de vida e o ambiente moldam nosso destino biológico?
A expansão das cidades, o viés de consumo e a erosão da natureza no prato humano. Tudo isso reverbera em microambientes intestinais férteis para o câncer. Nossos corpos são bibliotecas vivas do ecossistema que cultivamos.
A tragédia de Preta Gil, que enfrentou protocolos experimentais em Nova Iorque, mas sucumbiu ao câncer metastático, nos confronta com o limite entre ciência avançada e “saber ancestral” do corpo que precisa se mover.
Vamos entender essa trajetória: em janeiro de 2023, ela foi diagnosticada com adenocarcinoma colorretal. Submeteu-se a quimioterapia, radioterapia e múltiplas cirurgias (incluindo ressecções intestinais e colostomia), com períodos exclusivos de internação, complicações infecciosas e reconstrução intestinal.
Em agosto de 2024, o câncer recidivou com metástases em linfonodos, peritônio e ureter, exigindo cirurgias altamente invasivas (amputação do reto, colostomia definitiva) e internações prolongadas.
Esgotadas as opções nacionais, Preta buscou terapias-alvo em fase avançada de testes nos Estados Unidos, integrando protocolos experimentais no Memorial Sloan Kettering e Virginia Cancer Institute. O tratamento visou medicamentos dirigidos a alterações moleculares do tumor refratário.
Desfecho clínico: já tentando retornar ao Brasil, Preta passou mal, foi assistida e faleceu em solo estadunidense, em decorrência de complicações dessa doença maldita!
O caso ilustra a realidade clínica: pacientes portadores de câncer colorretal avançado e recorrente apresentam prognóstico geralmente reservado, mesmo diante de terapias inovadoras. O uso de tratamento-alvo em última linha representa esperança, mas enfrenta desafios de eficácia e acesso.
A agressão do tumor e sua persistência após múltiplos protocolos convencionais e experimentais demonstram a complexidade evolutiva e adaptativa do câncer colorretal metastático.
Apesar de avanços em imunoterapia, a maioria dos pacientes com genótipos mais comuns recai com frequência, evidenciando a necessidade de pesquisas contínuas.
A trajetória de Preta Gil também convoca outra leitura, como aponta o camaronês Achille Mbembe em sua obra Necropolítica (2003): vivemos em regimes onde a vida e a morte não são distribuídas ao acaso, mas geridas por critérios econômicos, raciais e geopolíticos.
Uma artista negra, brasileira, filha de um dos maiores nomes da música nacional, precisou atravessar oceanos para acessar protocolos experimentais negados à maioria. Mesmo assim, morreu longe da sua terra, do seu povo e da sua língua.
Não é só a biologia que mata: é o sistema. A medicina que promete salvar não pode continuar a excluir. É o vácuo estatal ocupado por soluções privatizadas e inacessíveis, como as terapias experimentais buscadas por Preta nos EUA. Não precisamos de distâncias oceânicas, mas de galáxias de cuidados.
O impulso antropogênico também revela a angústia de valores coletivos.
Os resultados do ensaio CHALLENGE ecoam um futuro possível: reabilitação motora como parte do protocolo oncológico padrão, com professores de educação física, fisioterapeutas, nutricionistas, incentivo institucional, visão em consonância com diretrizes internacionais modernas.
O CHALLENGE expande o horizonte do que se entende por cuidado oncológico e propõe uma nova gramática da recuperação: menos centrada na farmacoterapia e mais atenta ao protagonismo do corpo ativo.
Em tempos de medicalização extrema, o estudo resgata com elegância aquilo que a medicina tantas vezes esquece: que a saúde também se ensaia, se repete, se treina, e, sobretudo, se conquista.
Dentro desse panorama, é essencial considerar ainda o impacto social do estigma, das ostomias, do medo do corpo que muda.
O exercício físico não é apenas remédio; é devolver ao paciente autonomia, dignidade, conexão com a comunidade. Assistir alguém readquirir coragem para caminhar depois de uma cirurgia intestinal de grande porte é ver, na prática, como corpo, mente e liberdade se entrelaçam.
Entretanto, o espelho se faz mais borrado quando olhamos para os jovens. A incidência entre menores de 50 anos mostra um fenômeno emergente: enquanto as nações ricas observam declínio nas idades mais avançadas, registram aumento precoce nos mais jovens.
Isso sugere que a encapsulação cultural do sedentarismo, a ultraprocessação alimentar e a cronificação dos disruptores endócrinos transformaram o perfil da doença: reforçando que o câncer é sim filho não apenas da genética, mas do tecido social e histórico que produzimos.
Em última instância, nosso corpo é um mapa de escolhas. A intervenção protoética do exercício, validada pelo CHALLENGE, transforma esses mapas ao inserir caminhos de esperança no traçado da doença.
Isto é: programas de rastreamento de câncer, implementação de educação física como cuidado oncológico formalizado no Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentação de ambientes obesogênicos e financiamento para políticas de mobilidade ativa.
Nosso convite passa por ativar corpos e políticas, reforçar vínculos de cuidados, ações comunitárias, reinventar cidades em que se movimentar não seja exceção, mas norma civilizacional.
Meu corpo é habitat ou prisão? Pode ser um tributo à resiliência baseada em ciência, comprometido com a mobilidade como futuro terapêutico.
A passagem de Preta nos pede passos: não de silêncio, mas de insistência. Que nossos corpos resistam, se levantem e dancem por ela. Porque corpo em movimento é o mais belo poema que podemos escrever em homenagem à vida.
Quantos passos você deu hoje?
Alimentação saudável é força e proteção. Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.