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Saúde e Nutrição com Clayton Camargos: por trás da ciência envolvendo o leite de vaca

Consumo humano de leite de vaca é, sobretudo, uma construção histórica e cultural, e não uma imposição biológica

Poucos alimentos suscitam reações tão visceralmente contraditórias quanto o leite de vaca. De um lado, símbolo ancestral de nutrição e vida; de outro, acusado contemporâneo de agravar quadros metabólicos e causar alergias. Nesta diatribe, proponho um périplo pela história, fisiologia, cultura e ciência desse alimento que se infiltra, quase silenciosamente, nas tramas mais íntimas da civilização.

História da ingestão de leite: uma invenção cultural

O consumo humano de leite de vaca é, sobretudo, uma construção histórica e cultural, e não uma imposição biológica. A domesticação de bovinos, aproximadamente há 10 mil anos, na região do Crescente Fértil, especialmente na Mesopotâmia e no vale do Indo, foi o primeiro passo para a introdução do leite como alimento humano (The Origins of Human Society, Bogucki, 1999). Contudo, este não foi um hábito imediato: para além do leite materno, adultos humanos, originalmente, não possuíam capacidade de digerir a lactose.

Na Europa Neolítica, a mutação no gene LCT, que confere persistência da lactase na vida adulta, permitiu que algumas populações assimilassem o leite sem prejuízos digestivos. Esse traço genético disseminou-se amplamente entre os povos do Norte e do Centro da Europa, associando-se a uma dieta dependente de produtos lácteos, especialmente em sociedades pastorais.

Na Grécia Antiga, o leite não ocupava posição central: era considerado alimento bárbaro, relegado às práticas dos povos pastoris, uma visão que Homero e Hipócrates ajudaram a consolidar. Já os romanos diversificaram a relação com os laticínios: embora consumissem queijo e coalhadas, o leite fresco era destinado sobretudo às crianças, enfermos e idosos (Food in the Ancient World, Wilkins, 2005). 

Durante a Idade Média, a produção e o consumo de derivados lácteos (manteiga, queijos e iogurtes) floresceram sobretudo nos mosteiros, onde técnicas de conservação foram aprimoradas. No Renascimento, com a intensificação dos fluxos comerciais e a emergência de uma gastronomia sofisticada, o leite conquistou novo status, embora seu consumo ainda fosse restrito às classes menos abastadas.

A Revolução Industrial catalisou a transformação definitiva do leite em mercadoria global: o advento da pasteurização, desenvolvido por Louis Pasteur em 1864, e posteriormente o envasamento industrial, conferiram segurança sanitária ao produto e expandiram seu acesso às massas (Milk: A Local and Global History, Valenze, 2011). No século XX, impulsionado pelas políticas públicas de incentivo à nutrição infantil e campanhas sanitárias, o leite consolidou-se como ícone do bem-estar e da modernidade alimentar.

Benefícios nutricionais do leite e seus derivados

O leite de vaca é uma matriz alimentar complexa, rica em nutrientes essenciais: proteínas de alto valor biológico, cálcio biodisponível, vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K), além de potássio, fósforo e pequenas quantidades de zinco e selênio. Sua contribuição para a saúde óssea é bem documentada, sendo fundamental no pico de massa óssea durante a infância e adolescência.

Além disso, os ácidos graxos de cadeia curta e média presentes no leite demonstram efeitos anti-inflamatórios e moduladores do metabolismo lipídico. Os derivados fermentados, como iogurte e kefir, agregam o benefício probiótico, contribuindo para a saúde intestinal e imunológica.

O leite como promotor da saúde: uma visão crítica

Embora rico em nutrientes, o leite de vaca não pode ser considerado um alimento funcional universal. Sua capacidade de promoção de saúde depende do contexto individual, cultural e metabólico. Em populações com alta prevalência de intolerância à lactose, como asiáticos e africanos, o leite pode provocar efeitos adversos significativos. Por outro lado, em sociedades adaptadas geneticamente, o consumo moderado contribui para a prevenção de osteoporose e fraturas.

No campo sociológico, Pierre Bourdieu (A Distinção, 1979) já advertia que escolhas alimentares não são neutras: o leite, outrora luxo, tornou-se marcador de hábitos associados à normatividade sanitária e ao biopoder, inserindo-se na moralização da dieta.

Contraindicações e intolerâncias

A intolerância à lactose resulta da diminuição da atividade da enzima lactase-phlorizina hidrolase no intestino delgado, levando à má digestão e consequente fermentação colônica da lactose, produzindo gases, dor abdominal e diarreia. A predisposição genética para a persistência ou não da lactase está bem estabelecida, sendo a intolerância predominante em populações do leste asiático (até 90%) e rara entre os escandinavos (menos de 5%).

Epidemiologicamente, a intolerância manifesta-se mais frequentemente a partir da adolescência, quando há redução fisiológica da lactase. Não há evidência robusta de diferença significativa entre sexos quanto à predisposição, embora mulheres relatem mais frequentemente os sintomas, possivelmente por maior sensibilidade visceral e padrões culturais de percepção da dor.

Diferente da intolerância, a alergia às proteínas do soro do leite, especialmente à beta-lactoglobulina e à alfa-lactoalbumina, envolve uma reação imunomediada, geralmente do tipo IgE, com manifestações que vão desde urticária e vômitos até anafilaxia grave. A patogênese inclui uma falha na indução de tolerância oral, frequentemente associada a predisposição atópica.

O tratamento padrão é a exclusão rigorosa do leite e derivados da dieta, com substituição por fórmulas hipoalergênicas ou aminoacídicas. A imunoterapia oral é uma fronteira promissora, mas ainda restrita a protocolos experimentais.

Entre as condições potencialmente relacionadas ao consumo de leite, destacam-se ainda: acne, possivelmente modulada pela presença de hormônios bioativos; exacerbação de doenças inflamatórias intestinais; e, controversamente, associações com câncer de próstata, embora a evidência não seja conclusiva.

Por outro lado, o consumo regular de laticínios está associado a menor risco de hipertensão arterial e diabetes tipo 2, sobretudo quando ingeridos em versões fermentadas e com baixo teor de gordura.

O leite de vaca não é intrinsecamente um alimento inflamatório. Em indivíduos saudáveis, com digestão eficiente da lactose e sem predisposição alérgica, o leite pode, inclusive, exercer efeitos anti-inflamatórios e imunomoduladores. Entretanto, em populações específicas, especialmente aquelas com alergia, intolerância ou síndrome metabólica, o leite pode assumir um papel de agente pró-inflamatório, exacerbando ou perpetuando quadros inflamatórios crônicos.

Portanto, mais do que classificar o leite como vilão ou mocinho, cabe ao profissional de saúde avaliar criteriosamente a individualidade biológica, os hábitos alimentares, as condições metabólicas e o perfil imunológico de cada paciente, para recomendar ou restringir seu consumo de forma personalizada.

Leite materno e a introdução do leite de vaca na infância

A lactação humana é a norma biológica para a alimentação do lactente até pelo menos os dois anos de idade, sendo exclusiva nos primeiros seis meses, conforme orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS). A introdução do leite de vaca não é recomendada antes de um ano, dado seu perfil nutricional inadequado — excesso de proteínas e minerais e deficiência de ferro e ácidos graxos essenciais — que pode predispor a anemias e sobrecarga renal.

Após o primeiro ano, o leite pode ser introduzido como parte de uma dieta variada, sempre considerando risco alérgico e digestivo.

O melhor leite: integral, semidesnatado ou desnatado?

A escolha entre leite integral, semidesnatado e desnatado depende do perfil metabólico e das necessidades calóricas individuais. O leite integral possui aproximadamente 62 kcal por 100 mL, com 3,2 g de gordura; o semidesnatado, cerca de 50 kcal e 1,6 g de gordura; e o desnatado, 36 kcal e menos de 0,5 g de gordura.

Para indivíduos com obesidade ou dislipidemias, o leite semidesnatado ou desnatado pode ser preferível. Entretanto, há evidência de que o consumo moderado de leite integral não necessariamente aumenta risco cardiovascular e pode favorecer a saciedade.

Formas de consumo: gelado, quente, processado?

Do ponto de vista fisiológico, o consumo quente pode facilitar a digestão em indivíduos sensíveis, por promover a desnaturação parcial de proteínas. O leite gelado, por outro lado, pode retardar o esvaziamento gástrico e provocar desconforto em casos de hipersensibilidade esofágica.

Quanto aos leites processados, a pasteurização elimina patógenos sem comprometer significativamente o perfil nutricional. Já o leite UHT (Ultra High Temperature) garante maior estabilidade microbiológica, mas pode reduzir frações de vitaminas termossensíveis, como B12 e ácido fólico (Heat treatment of milk. In: Milk Processing and Quality Management, Deeth, H. C., & Datta, 2011).

Os leites ultraprocessados (aromatizados, achocolatados, com adição de açúcar ou espessantes) devem ser consumidos com moderação, dado seu potencial de contribuir para a ingestão excessiva de açúcares livres, em descompasso com as recomendações da OMS.

O leite de vaca é, em última instância, um artefato da cultura, mais do que um imperativo biológico. Sua trajetória acompanha a história da humanidade, desde o pastoreio neolítico até as prateleiras dos supermercados globalizados. Comporta nutrientes preciosos, mas também desafios metabólicos e imunológicos.

Assim, longe de respostas absolutas, sua inclusão na dieta deve ser mediada por conhecimento, escuta clínica e respeito às singularidades biológicas e culturais de cada indivíduo.

Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.

 

*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.

CRN-1 2970.

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