Vencemos os dois principais feriadões do primeiro quadrimestre de 2025, Carnaval e Páscoa — respectivamente, além das férias de verão. Aí é quando os sucessivos excessos alimentares e alcoólicos se manifestam com maior exuberância no peso e na composição corporal. O sinal vermelho se acende. É como se, em tão pouco tempo, o ano iniciasse novamente. O que fazer?
Iniciar uma trajetória em direção a um estilo de vida mais saudável — que compreenda a adoção de hábitos alimentares equilibrados e a prática regular de atividade física — configura-se, para muitos, um desafio hercúleo.
A dificuldade de dar o primeiro passo e sustentar a motivação inicial não é apenas uma questão de “força de vontade” individual. Trata-se de uma complexa interação entre fatores biológicos, culturais, sociais e comportamentais, ancorados em raízes históricas profundas e intensamente moldadas pelo ambiente moderno.
A neurociência comportamental explica que o cérebro humano é programado para buscar o prazer imediato e minimizar esforços. Em um cenário ancestral de escassez de alimentos, poupar energia era uma vantagem evolutiva decisiva para a sobrevivência. Assim, as estruturas cerebrais relacionadas ao sistema de recompensa — especialmente o núcleo accumbens — favorecem escolhas que proporcionam gratificação instantânea, como alimentos hipercalóricos e a ociosidade física.
Essa herança biológica se entrelaça com um ambiente contemporâneo obesogênico: ultraprocessados de alta palatabilidade, oferta alimentar abundante e estímulos incessantes ao sedentarismo, conforme demonstram os estudos de Swinburn e colaboradores sobre obesidade ambiental.
Iniciar um projeto de reeducação alimentar e exercício físico implica, muitas vezes, nadar contra a corrente dos hábitos culturais consolidados. A sociologia da alimentação mostra que o ato de comer transcende a mera ingestão de nutrientes; trata-se de um ato social, identitário e afetivo (Fischler, 1995).
No Brasil, a celebração da comida afetiva — das refeições dominicais às festividades regadas a bebidas alcoólicas — reforça a associação entre comer e pertencimento social. Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 66% dos adultos brasileiros consomem bebidas alcoólicas em encontros sociais, fator que não apenas contribui para o aporte calórico extra, mas também para a desinibição alimentar, conforme discutido por Yeomans.
Ademais, a pressão social sutil — ora pela “quebra da dieta”, ora pela recusa em recusar — cria embates psicológicos que frequentemente resultam em sentimentos de culpa e fracasso, dificultando ainda mais a adesão ao novo estilo de vida.
Modificar padrões alimentares e incorporar a atividade física exige adaptações fisiológicas e psicológicas que, inicialmente, são desconfortáveis. Estudos apontam que alterações no metabolismo basal durante processos de emagrecimento levam a uma redução adaptativa do gasto energético — fenômeno conhecido como “adaptação metabólica” — dificultando não apenas o emagrecimento, mas, sobretudo, a manutenção do novo peso.
Lembre-se: o centro de regulação do peso, no cérebro, registrará o maior peso da vida como referência, e recrutará o equipamento necessário para recuperá-lo sob todas as circunstâncias.
Paralelamente, mecanismos hormonais entram em ação: os níveis de grelina, o hormônio da fome, aumentam, enquanto os níveis de leptina, que sinaliza saciedade, diminuem. Esse desbalanço favorece o apetite e dificulta a adesão prolongada ao déficit calórico necessário para a redução ponderal.
Em termos psicológicos, iniciar uma nova rotina exige recursos cognitivos significativos, em especial o autocontrole. A teoria da autodeterminação, de Deci & Ryan, postula que a motivação intrínseca — aquela que nasce da valorização pessoal do comportamento — é mais sustentável do que a motivação extrínseca baseada apenas em recompensas externas.
Se iniciar é difícil, manter é ainda mais desafiador. Estudos longitudinais demonstram que cerca de 80% das pessoas que emagrecem recuperam o peso emagrecido em até cinco anos. Essa constatação revela que o problema central da obesidade contemporânea não é unicamente o emagrecimento, mas a consolidação de um novo equilíbrio comportamental, fisiológico e emocional de longo prazo.
Manter o peso implica, muitas vezes, aceitar uma nova identidade: a de alguém que pratica exercícios de forma consistente, que realiza escolhas alimentares conscientes, e que, sobretudo, ressignifica seu prazer e sua recompensa para além da comida.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a obesidade atingiu proporções epidêmicas globais, com mais de 1 bilhão de adultos vivendo com excesso de peso, sendo 650 milhões com obesidade. No Brasil, dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS, 2019) revelam que 60,3% da população adulta encontra-se com excesso de peso, e 25,9% já se enquadram na classificação de obesidade.
Tais números corroboram a necessidade de repensarmos as abordagens, não apenas no nível individual, mas estrutural: criar ambientes que favoreçam escolhas saudáveis, apoiar políticas públicas que promovam alimentação de qualidade, e fomentar uma cultura que celebre a autogestão do cuidado de forma sustentável e prazerosa.
Começar um projeto de reeducação alimentar e exercício físico é, em última análise, um ato de resistência: resistência contra os impulsos biológicos ancestrais, contra expectativas culturais enraizadas e contra as facilidades oferecidas por um ambiente obesogênico.
Comida deve ser comida, e não encarada como um produto. E precisa ser aproveitada em toda a sua potência. Como bem-dito pelo Papa Francisco, que denunciava a “cultura do descarte”, e acreditava que jogar comida fora era como roubar das mãos dos famintos. Para além disso, defendia que alimentar não era caridade, mas justiça.
Não é apenas sobre “emagrecer para o verão”, mas sobre reescrever narrativas internas, respeitar os ritmos da mudança e cultivar novas formas de prazer e pertencimento. Mais do que força de vontade, é preciso ciência, empatia e, sobretudo, um olhar amoroso e persistente para o próprio processo.
Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.