Assim como os cigarros, as embalagens dos alimentos ultraprocessados deveriam vir com um aviso: “pode matar!” Somente a regulamentação impedirá essas empresas de fabricarem produtos aos quais estamos evolutivamente programados para desejar.
A década de 1970 foi um período confuso para ser fumante. Na sua maioria, as pessoas tinham alguma noção de que fumar lhes faria mal: as provas que associavam o tabaco ao câncer de pulmão eram incontestáveis desde 1956. Clique aqui para acessar o estudo.
No entanto, apesar dos programas governamentais de educação, do aumento dos impostos e das restrições à venda para crianças, estes avisos não tinham permeado totalmente a atmosfera. Como poderia ser diferente? A vida cotidiana inundou o cérebro com a ideia de que fumar era bom. Os cigarros eram anunciados em revistas, outdoors e eventos esportivos; eles pendiam da boca das estrelas do cinema e da TV; a fumaça de nicotina envolveu escritórios, bares e transportes públicos.
Na década de 1980, a ideia de disfarçar os cigarros em itens mais saudáveis, de que se poderia reconhecer os avisos, de outra parte alegando que não se aplicavam ao seu próprio produto, tornou-se uma defesa central e uma jogada de marketing. Novos cigarros com “filtro” (por vezes contaminados com produtos químicos perigosos) dominaram o mercado, defendendo falsamente que protegeriam contra os piores danos do fumo. Milhares de pessoas mudaram para cigarros com “baixo teor de alcatrão” num esforço para fazer uma escolha “saudável”.
Com efeito, a publicidade da época ilustrava modelos de aparência atlética praticando esportes radicais segurando em suas mãos os cigarros com baixos teores de alcatrão e nicotina; associando exercícios físicos e beleza com esses produtos supostamente mais saudáveis.
Veja uma propaganda televisiva desses cigarros nos anos 1980:
Em meados dos anos 1980 já não se podia afirmar que fumar era apoiado pelos médicos, como nos anos 1940 – mas ainda não era forçado a admitir em cada embalagem que o seu produto realmente matava pessoas. Foi apenas na década de 1990 que, enfeitados com advertências obrigatórias, os anúncios de cigarros começaram a flertar abertamente com a morte: imagens de pessoas definhando, membros amputados, e pulmões consumidos pelo tabagismo passaram a ilustrar as embalagens, isto é, se você vai morrer, morra fumando o nosso cigarro. Somam-se ainda intervenções fiscais que incluíram aumento de impostos e estabelecimento de preços mínimos para os produtos do tabaco.
Em 1989 tínhamos 32,4% de fumantes no país, em 2023 esse número reduziu mais da metade, alcançando 12,8% de brasileiros tabagistas. Segundo a Organização Mundial da Saúde, OMS, atualmente ocupamos o 34o lugar no ranking de tabagismo. O caso do Brasil é considerado mundialmente como um dos mais bem sucedidos de política pública de combate ao cigarro.
Chegamos em 2024 com o que antes se chamava junk food, e que agora é classificado como alimentos ultraprocessados. Isto é, uma preparação que em algum momento foi transformada em conteúdo irreconhecível e banhada por aditivos químicos. Mas não se trata de nenhuma novidade. Falamos há anos sobre os tipos de alimentos que nos provocam o consumo de grandes quantidades de sal, açúcar e gordura numa só mordida ou gole. São hambúrgueres, batatas fritas, barras de chocolate, sorvetes, refrigerantes e cereais processados.
Tal como aconteceu com os cigarros na década de 1970, muitas evidências estão disponíveis. Os alimentos ultraprocessados e industrializados estão associados à diversos tipos de câncer, doenças cardíacas e acidentes cerebrovasculares. Não restam dúvidas de que estes produtos são motores importantes para a instalação da obesidade: no Brasil, 56,8% da população está portadora de excesso ponderal – mais adiante me estenderei sobre essa informação.
Aproximadamente 168 mil mortes anuais são atribuíveis ao sobrepeso e à obesidade. Segundo a atualização do Atlas Mundial da Obesidade, divulgado no ano em curso, até 2035 metade das crianças brasileiras estará obesa. Em todo o mundo, as dietas pouco saudáveis estão matando mais pessoas do que o tabaco. Clique aqui para acessar o Atlas.
Entretanto, estes avisos de perigo ainda não foram totalmente compreendidos no nosso dia a dia, no qual os alimentos ultraprocessados são divulgados, por exemplo, a partir das paradas de ônibus, intervalos comerciais de televisão ou de postagens nas redes sociais – assistidos como uma indulgência, um prazer culposo, mas não um flagelo.
Nas ruas e nos corredores dos supermercados, nossos cérebros, evoluídos para a escassez, navegam em um mundo de doses de dopamina baratas, acessíveis e deliciosas. Os fabricantes de ultraprocessados acompanham seus clientes online com algoritmos customizados sob medida do desejo.
Assim como os cigarros “light”, a indústria de alimentos também oferece suas versões “light”, que segundo a legislação nacional deve ter menos 25% de alguns de seus nutrientes como açúcar ou gordura, levando a uma diminuição do valor calórico em relação ao produto convencional. No entanto, estes são alimentos saturados em substâncias prejudiciais à saúde e equipados para fazer com que você os coma cada vez mais. Remover 25% do açúcar fará muito pouco. Salvo algumas poucas exceções, são muito limitados os alimentos ultraprocessados e industrializados que podem ser considerados saudáveis.
Sabemos o que deve acontecer a seguir: o tabaco deu-nos a experiência. Os alimentos ricos em sal, açúcar e gorduras saturadas têm de ser regulamentados de forma mais rigorosa. É o único caminho. Os itens ultraprocessados são rentáveis: os modelos de negócio das maiores empresas produtoras de alimentos do mundo dependem deles. Esperar que se transformem radicalmente em uma oferta de maioria saudável é como esperar que um andarilho cansado e faminto resista a um hambúrguer. As boas intenções também são prerrogativas do inferno.
A maioria dos governos nos últimos 30 anos identificaram a obesidade como um problema. Até as empresas alimentícias, algumas delas, pedem nova legislação: atualmente, dizem, os retalhistas que querem fazer o bem são penalizados. Embora o lobby dessa indústria seja de uma eficiência impressionante, temos alguns avanços como a regulação da ANVISA, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que obriga os fabricantes de alimentos industrializados identificarem “lupas” em suas embalagens comunicando o excesso de açúcar adicionado, sódio e gorduras saturadas.
Recentemente, na primeira reunião plenária do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, CONSEA, o presidente Lula assinou dois decretos importantes: um que regulamenta o Programa Nacional de Cozinhas Solidárias, e outro que normaliza a nova cesta básica, para que sejam incluídos mais alimentos minimamente processados em sua composição. Clique aqui para acessar a resolução da ANVISA.
De outra parte, o governo federal segue distante de um enfrentamento agressivo à progressão do sobrepeso e da obesidade. Cabe lembrar que não é uma decisão exclusiva da administração em curso, e sim de uma sucessão de gestões desde o final dos anos 1990 – ocasião do início da transição epidemiológica nutricional da fome para o excesso ponderal -. Aliás, em tempo algum isso foi tratado com a gravidade que merece.
Como reflexão: os dados do relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo” da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, FAO, publicado em 2023, mostrou que no Brasil temos 90,4 milhões de pessoas sob insegurança alimentar – destes, 21,1 milhões passando fome. E, segundo o Covitel (Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia) conduzido pelo instituto Vital Strategies e parceiros, também de 2023; 121,7 milhões de brasileiros estão portadores de excesso de peso – destes, 52 milhões estão obesos. Temos mais sobrepesados e obesos do que famintos. E temos também gordos mortos de fome. Clique aqui para acessar o relatório da FAO e o Covitel.
O debate sobre a obesidade no Ministério da Saúde limita-se à linha de ação e não se apresenta como política pública protagonista. Tenho a crer que o melhor modelo que sirva de inspiração seja justamente àquele empreendido nos anos 1990 para o combate ao tabagismo.
A escolha de acender um cigarro, empanturrar-se de batatas fritas industrializadas e tomar uma lata de refrigerante com açúcar é pessoal. Portanto, é mister que as informações para o esclarecimento dessa decisão e suas consequências sejam asseguradas a partir de iniciativas governamentais. Afinal, isso impactará no sistema público de saúde que, embora o investimento seja individual, o custeio será coletivo.
Estamos mais do que atrasados na oferta de uma abordagem nacional de combate à overdose ponderal, cujo um dos eixos estratégicos seja justamente o enquadramento dos ultraprocessados para um modelo mais saudável, e que possa ser um adjuvante no combate e não um fortificante da obesidade. O lucro da industria de alimentos é diretamente proporcional ao depauperamento da economia da saúde, cujos sistemas – público e suplementar – incorporarão cada vez mais tecnologias de alto custo para o tratamento do excesso de peso e seus desdobramentos.
Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta em uma coluna futura.
*Clayton Camargos é sanitarista pós graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.