Quando fecho os olhos e convoco a imagem de Carmen Miranda, ela não me aparece apenas como um ícone pop ou uma estrela do cinema; ela surge como uma entidade mítica, coroada por um turbante de frutas que não é adorno, mas manifesto.
Ali, empoleiradas em equilíbrio improvável, regozijam maracujás, romãs, jabuticabas e mexericas. Não são ornamentos hiper sensoriais. São tesouros vivos de uma cultura que sabia celebrar o alimento e saúde antes que a pressa, o medo e a desinformação o transformassem em suspeito.
Esse turbante é mais que um relicário: é uma proclamação exuberante de que comer é gesto de celebração e identidade.
No entanto, como toda obra-prima que desafia o tempo, nesse início de século XXI se vê ameaçada por uma era que desconfia das próprias cores e desaprende o prazer de morder o que vem da terra.
E não é apenas impressão ou nostalgia: a ciência confirma essa perda. A mais recente síntese científica, um umbrella review publicado na Advances in Nutrition, revisou 41 meta-análises envolvendo mais de um milhão de participantes, confirmou uma verdade incontornável: dietas ricas em frutas, acompanhadas de grãos integrais, verduras, peixes e oleaginosas, associam-se de maneira robusta à redução da mortalidade por todas as causas.
Esse não é um coral abstrato de pesquisadores, mas a chave para mais anos de vida vivos.
Evidências adicionais, como o estudo publicado em 2024 no Frontiers in Nutrition, mostram que o consumo regular de maçã e banana, isto é, de três a quatro vezes por semana, reduz drasticamente a mortalidade ao longo de dez anos em portadores de dislipidemia, com hazard ratios de cerca de 0,61 e 0,71, respectivamente, e um efeito ainda mais promissor quando combinados. Em outras palavras, por trás desses valores, existem histórias de corpos que adoecem menos, de respirares que se prolongam e de mesas que permanecem cheias e pulsantes.
No entanto, como sobras de um amor traído, os sucos de fruta enfrentam duras críticas. Apesar de trazerem vitaminas, minerais, polifenóis e compostos bioativos, concentram açúcares livres que podem comprometer dentes, glicemia e silhueta.
A literatura mais recente, reunida em outro umbrella review na Nutrition Reviews, revela que o suco 100% de frutas, consumido com moderação, pode trazer benefícios modestos à saúde cardiovascular e à pressão arterial, sobretudo, os sucos de laranja e romã. Mas o consenso permanece: não substitui o ato de mastigar, saborear a polpa e sentir a fibra. O contraste entre líquido e dente é também uma contraposição entre sede e presença.
O consumo aumentou de 2008 a 2014, mas despencou entre 2015 e 2023, com queda mais acentuada entre mulheres, jovens e pessoas com maior escolaridade.
É um recuo que não se explica apenas por preço ou acesso, mas por uma mudança cultural tácita: a substituição do ritual fresco e colorido por comida, ultraprocessada, empacotada e onipresente.
É nesse vazio estatístico que se desbota o colorido do turbante de Carmen: o amarelo-ouro da manga, o rubi da ameixa e a esmeralda do abacate rareiam, como se a própria cultura fosse perdendo preciosidade a cada refeição empobrecida.
O estudo retro comentado analisou uma amostra representativa de 32.900 brasileiros da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), utilizando regressão linear para investigar a relação entre o percentual calórico das frutas na dieta e o consumo de ultraprocessados. A descoberta nos mostra que as frutas representam pouco mais de 5% das calorias totais da dieta brasileira, e quase metade disso é na forma de suco.
Traduzindo do jargão científico: medir essa correlação é, no fundo, medir o quanto o nosso prato se afasta da roça e se aproxima da esteira industrial.
Mas o que há de sublime no pulsar de uma polpa suculenta permanece. O Guia Alimentar para a População Brasileira nos lembra que o valor das frutas não se resume aos seus nutrientes isolados, mas à matriz alimentar, à cultura e ao modo que comemos.
A saúde nasce também do contexto: do corte à faca até compartilhar à mesa. Retirar-se de um domingo em família ao redor de uma salada de frutas é ceder à modernidade estéril; comer com olhos nos olhos é reencontrar um diálogo ancestral.
Pese, então, esse deslocamento simbólico: enquanto o mundo se hipnotizou pelo turbante de frutas deslumbrante e festivo, hoje certas prescrições dietéticas o acusam de “culpado” por excesso calórico ou teor de frutose.
Trata-se de uma inversão quase poética: a abundância que outrora simbolizava saúde e vitalidade agora é vista com desconfiança. E não se trata apenas de ciência; é também de como nos afastamos do sentido cultural e afetivo do comer.
Há, é verdade, momentos em que a fruta precisa ser modulada, não por capricho, mas por circunstâncias clínicas muito específicas.
É sintomático e, no fundo perverso, que as redes sociais tenham transformado frutas e seus sucos em vilões equiparados a refrigerantes ultraprocessados, ignorando de forma conveniente o abismo que os separa.
A denúncia aqui é clara: quando se reduz uma fruta a sua carga de açúcares livres, sem considerar o arsenal nutricional que a acompanha, cria-se um espantalho nutricional que serve mais ao sensacionalismo do que à saúde coletiva.
Essa deformação não é apenas cientificamente desonesta; é um truque retórico conveniente, daqueles que se empacotam em infográficos coloridos para disfarçar sua indigência de conteúdo.
Ao fingir que uma laranja espremida é irmã siamesa de um refrigerante, legitima-se a lógica do mercado que vive de nos afastar da terra e nos acorrentar à gôndola. É o milagre da alquimia às avessas: transformar um pomar inteiro em mero código de barras.
A estetização do dado isolado, arrancado do seu contexto, serve para moldar ficções que viralizam. Essas narrativas minam a confiança no alimento in natura e reescrevem o sabor coletivo a serviço da indústria de ultraprocessados.
Reencontremos, portanto, o adereço carnavalesco de cabeça: com pencas de bananas, carambolas, morangos (não aquele “do amor” cristalizado pela cafonice dos modismos alimentares), e muito mais! Não como badulaque folclórico, mas de reconciliação com a própria biografia alimentar.
Ao escolhermos uma fruta-do-conde madura ou nos deliciarmos com um cacho de uvas, não apenas nutrimos o corpo; devolvemos uma porção tropical de nós mesmos que havia se perdido nas esquinas acinzentadas das metrópoles.
Imaginemos Carmen Miranda retirando, uma a uma, as frutas do seu turbante e nos entregando com as mãos abertas, como quem oferece não apenas sustento, mas patrimônio vital. Aceitemos, sem hesitação, esse espólio nutricional.
Enquanto houver quem morda uma maçã vermelha e sensual com “arco-íris de prazer” haverá esperança contra a mordaça do paladar.
Quando nossa última hora chegar, que o perfume que nos acompanhe seja o de uma fruta selvagem como símbolo derradeiro de que vivemos com “liberdade! Liberdade! Abra as asas sobre nós. E que a voz da igualdade, seja sempre a nossa voz!” (cantado no samba-enredo campeão da Imperatriz Leopoldinense em 1989).
Alimentação saudável é força e proteção. Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.