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Saúde e nutrição com Clayton Camargos: o truque do detox!

As desintoxicações são anunciadas como um meio de livrar o organismo do excesso de toxinas, descansar a digestão e o sistema imunológico e reiniciar o metabolismo, e se enquadram em um dos três guarda-chuvas
Foto: Unsplash

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Vamos deixar uma coisa bem clara: só existe um tipo verdadeiro de desintoxicação, que é aquela realizada em hospitais ou centros especializados em reabilitação para tratar portadores de alguma adição química, alcoolismo ou vítimas de envenenamento. Em qualquer outro contexto, “desintoxicação” refere-se a truques não comprovados, como dietas, suplementos ou até mesmo irrigação do cólon, destinados a eliminar toxinas do organismo.

Uma pseudociência: o objetivo de uma desintoxicação ou limpeza corporal é supostamente remover substâncias “tóxicas” que se acumularam no corpo. No entanto, não são nomeadas especificamente por aqueles que vendem desintoxicação. Em vez disso, são geralmente chamados de “venenos”, “poluentes” e “toxinas”. Não é de surpreender que não exista uma definição consistente ou específica do que implica essa abordagem.

As desintoxicações são anunciadas como um meio de livrar o organismo do excesso de toxinas, descansar a digestão e o sistema imunológico e reiniciar o metabolismo, e se enquadram em um dos três guarda-chuvas:

1. aquelas que substituem alimentos por líquidos;
2. aquelas que afirmam apoiar o processo natural de desintoxicação do corpo;
3. aquelas que “limpam” o trato digestório através de “colonterapia”;

O objetivo dessas intervenções é eliminar as toxinas com as quais nosso corpo entra em contato todos os dias – sejam elas atmosféricas, dos alimentos que comemos ou dos produtos que usamos. Isso normalmente é feito em jejum, restringindo drasticamente a ingestão de alimentos, substituindo alimentos sólidos por líquidos ou bebendo muita água. Infelizmente, as desintoxicações não atendem a nenhuma dessas afirmações.

Se você deseja emagrecer, uma dieta detox poderia ajudá-lo nesse objetivo em uma perspectiva imediata. O problema é que a maioria das pessoas recupera todo o peso emagrecido depois de retornar à sua rotina alimentar habitual.

Nossos corpos são especialistas em se livrar de toxinas, e não existem alimentos ou truques que acelerem esse processo, que já está funcionando muito bem. Muitas pessoas caem na falácia da desintoxicação porque vivem estilos de vida pouco saudáveis, comendo muitos alimentos ultraprocessados e não praticando exercícios físicos. Eles entendem que a desintoxicação é uma solução rápida que irá “faxinar” toda a “sujeira” prejudicial à saúde que se esconderia em seus corpos.

Mas a verdade é que as toxinas não se acumulam no fígado, nos rins ou em qualquer outra parte do corpo, e você não vai se livrar delas com a última maravilha da desintoxicação. Se você entende de biologia básica, fica muito claro que dietas que prometem “limpar o fígado de toxinas” são simplesmente estapafúrdias.

O fígado é o responsável pela produção de bile para digerir os alimentos, armazenar glicose para energia, metabolizar proteínas e gorduras, e também por processar as toxinas ingeridas. Das centenas de funções desempenhadas por esse órgão, garantir que as impurezas sejam removidas com segurança do sangue é uma das tarefas mais críticas. Nosso corpo é exposto a produtos químicos potencialmente tóxicos (eles produzem sobrecargas se suas concentrações no sangue ultrapassarem determinados limites) ao entrar em contato com certos poluentes ambientais, como pesticidas, mas também como resultado da digestão normal.

Por exemplo, quando digerimos proteínas, a amônia é liberada como subproduto, que é rapidamente convertida em uréia e depois eliminada pela urina. Quaisquer resíduos que esse órgão não possa usar são convertidos e transportados pela bile para o intestino delgado ou conduzidos pelo sangue para os rins.

O fígado desintoxica substâncias nocivas em duas etapas principais. Primeiro, utiliza enzimas e oxigênio para metabolizar substâncias, tornando-as mais solúveis em água, facilitando a eliminação do corpo. Na segunda etapa, as toxinas particularmente processadas são combinadas com enxofre ou aminoácidos para serem removidas pela bile ou pela urina. Nenhum ingrediente de desintoxicação pode fazer esse trabalho.

Até mesmo o argumento sobre a redução de peso pela qual as desintoxicações são famosas é uma cortina de fumaça. Como qualquer abordagem radical, uma dieta de desintoxicação fará com que a pessoa inicialmente emagreça muito peso. Dietas contendo mínimo ou nenhum carboidrato esgotam os estoques de glicogênio no fígado e no tecido muscular – e com isso, o peso de água de uma pessoa.

O tecido muscular pode armazenar 400 g de glicogênio, enquanto o fígado armazena 100 g. Além disso, o glicogênio é armazenado com 3-4 partes de água. Assim, uma dieta extremamente baixa ou sem carboidratos pode produzir uma perda imediata de peso de 2,5 kg, esgotando os 500 g de glicogênio disponível e a subsequente água armazenada com ele.

Em segundo lugar, as restrições energéticas farão com que o corpo decomponha os músculos em glicose num processo chamado gliconeogênese. Portanto, a perda de peso a partir de uma restrição severa do consumo de carboidratos será a partir do tecido muscular – e não adiposo, que geralmente é o objetivo. A limpeza fictícia do fígado não leva realmente ao emagrecimento, é apenas eliminação de líquidos.

Não existe um artigo científico confiável que consagre um produto, dieta ou remédio desintoxicante. Uma revisão sistemática publicada no Journal of Human Nutrition and Dietetics afirma que, até onde sabemos, nenhuma investigação clínica rigorosa sobre dietas de desintoxicação foi conduzida. Os poucos estudos que foram publicados sofrem de limitações metodológicas significativas, incluindo amostras pequenas, viés de amostragem, falta de grupos de controle, dependência de autorrelato e medições qualitativas em vez de quantitativas.

Dito isso, existem mais de 100 formas diferentes de doenças hepáticas, mas não há evidências de que qualquer limpeza corporal confira proteção. Os maiores fatores de risco para seu adoecimento são o consumo excessivo de álcool, abuso de medicamentos e o histórico familiar de hepatopatias. Lembre-se, o fígado se regenera, é no presente o órgão do futuro.

As limpezas apenas com líquidos, que são sem dúvida as mais populares, substituem os alimentos sólidos por uma seleção de sucos ou shakes à base de frutas e vegetais. Via de regra, os protocolos com essas preparações cursam entre 3 e 21 dias – embora alguns indivíduos estendam por mais tempo.

Beber sucos à base de frutas e vegetais – desde que sejam recém-prensados – shakes, e também sopas, pode sim ser saudável. Essas bebidas costumam ser repletas de nutrientes, e podem ser um ótimo complemento para sua dieta. Mas não a única fonte. De toda sorte, ingerir exclusivamente preparações líquidas e privar o corpo de comida sólida é onde a desintoxicação se transforma em um território prejudicial à saúde. Essas intervenções removem a maior parte das proteínas e gorduras da dieta.

A restrição da oferta de proteínas e gorduras não apenas significa que provavelmente você atravessará todo o processo com fome, mas também repercutirá uma série de outros efeitos adversos. De fato, essas abordagens poderão levar a níveis baixos de açúcar no sangue, confusão mental, diminuição da produtividade e fadiga. Apesar de pseudo especialistas afirmarem que há uma diferença entre desintoxicação e limpeza, é difícil contrastar as abordagens porque nenhum dos “métodos” tem uma definição científica padrão. Também há uma importante sobreposição e disparate entre os conceitos.

É indiscutível que investir no consumo de frutas, legumes e hidratação trará benefícios para saúde. No entanto, as desintoxicações são ineficazes, desnecessárias, desagradáveis e arriscadas. Seus produtos nada mais são do que uma estratégia de marketing – outro golpe não regulamentado que está fora de controle, e que compõem a lucrativa esteira da indústria do bem-estar, cujas promessas se balizam nas expectativas de uma clientela disposta a custear acriticamente tecnologias potencialmente fraudulentas. Esses modismos, muitas vezes caros, são basicamente desperdícios de tempo e dinheiro.

 

*Clayton Camargos é pós graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.