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Saúde e nutrição com Clayton Camargos: o DNA do brasileiro e a obesidade

Estudos internacionais estimam que entre 40% e 70% da variação do índice de massa corporal pode ser explicada por fatores genéticos

Muito recentemente, a revista Science publicou um dos mais abrangentes estudos genéticos já realizados sobre a população brasileira: “admixtures impact on brazilian population evolution and health”, uma produção colaborativa entre o Instituto de Biologia Evolutiva da Espanha e a Universidade de São Paulo, integrada ao projeto DNA do Brasil.

Ao sequenciar 2.723 genomas completos com alta cobertura, o estudo revelou não apenas a riqueza da diversidade genética nacional, mas também suas implicações diretas para a saúde pública, incluindo a obesidade e as doenças metabólicas. Podemos ser avaliados como uma das maiores miscigenações no mundo, quiçá o país mais miscigenado. 

Num primeiro olhar, o estudo pode ter o seu universo amostral questionado. Vamos lá: em genética populacional, representatividade é mais importante que proporcionalidade numérica. Isso significa que é mais eficaz amostrar subgrupos geneticamente distintos (por região, etnia, isolamento geográfico ou histórico), enquanto microssatélites, do que apenas calcular uma fração da população total. O estudo cobriu todas as regiões do país, o que já é considerado uma amostra robusta para análises de diversidade e ancestralidade.

O Brasil, País que estatuiu-se pelo cruzamento de povos sob as violências da escravidão e da colonização, carrega em seu genoma uma história que é grafada por devastações, antagonismos e adaptações.

A genética flagra, com precisão molecular, aquilo que a antropologia já intuía: somos uma nação biológica composta por 59% de ancestralidade europeia, 27% africana e 13% indígena, cujas proporções variam de forma expressiva entre regiões e indivíduos. O Norte e o Nordeste, com efeito, concentram maiores proporções de ancestralidade africana e indígena; o Sul, europeia.

Fonte: Brazilian Genomic Diversity – Admixture’s impact on brazilian population and health – Science – 2025

Essa composição se mostra decisiva. O estudo identificou mais de 8,7 milhões de variantes genéticas ainda não descritas na literatura internacional, e mais de 36 mil delas são raras e potencialmente patogênicas, com envolvimento em doenças como diabetes tipo 2, obesidade, hipertensão e síndromes inflamatórias.

O que esse dado nos sugere é que parte importante da carga de risco para doenças crônicas no Brasil está registrada em códigos até hoje invisíveis para a ciência hegemônica, centrada em bancos genômicos eurocêntricos e homogeneizados.

A genética da obesidade no Brasil

Diversos estudos internacionais, como os conduzidos pelo consórcio GIANT e pelo UK Biobank, estimam que entre 40% e 70% da variação do índice de massa corporal (IMC) em uma população pode ser explicada por fatores genéticos. O alelo de risco no gene FTO, por exemplo, pode aumentar em até 1,67 vezes a chance de desenvolver obesidade em indivíduos homozigotos.

Esse intervalo é uma estimativa média baseada em estudos de gêmeos, famílias e adoções, que avaliam o quanto os fatores genéticos contribuem para a variação do IMC e da adiposidade entre indivíduos.

  1. Estudos com gêmeos idênticos (monozigóticos) — que compartilham 100% dos genes — mostram maior concordância para obesidade do que gêmeos fraternos (dizigóticos), sugerindo forte influência hereditária.
  2. A herdabilidade do IMC, que mede o quanto a variação entre indivíduos pode ser atribuída à genética, conforme retro comentado modaliza entre 40% e 70%, dependendo do grupo populacional e do ambiente analisado.

Genes herdados plasmam desde o apetite até a eficiência metabólica, passando pela distribuição de gordura corporal, a sensibilidade à insulina e até o prazer proporcionado pela comida. Porém, essa herança não é uma sentença: é uma predisposição que dialoga — e por vezes colide — com o ambiente moderno, hiper estimulante e hipercalórico.

No Brasil, entretanto, essas estimativas careciam de representatividade populacional. O estudo recém-publicado de certa forma alcança essa lacuna e mostra que as variantes de risco genético para obesidade são mais frequentes em indivíduos com maior ancestralidade africana e indígena, especialmente em genes relacionados ao metabolismo energético, regulação do apetite (como o MC4R) e inflamação crônica de baixo grau — mecanismos-chave na fisiopatologia da obesidade.

Embora não quantifique o risco de obesidade em termos percentuais para a população geral, ele documenta:

  • Que muitas dessas variantes são exclusivas ou mais prevalentes na população brasileira do que em outras genotipadas globalmente;
  • Que essas variantes podem afetar genes relacionados ao metabolismo, ao armazenamento de gordura e ao controle do apetite.

O estudo destaca que a ancestralidade africana e indígena está associada a uma maior carga de variantes genéticas de risco, em especial para doenças como obesidade e diabetes tipo 2. Essa relação, no entanto:

  • Não determina o destino individual, mas sugere uma predisposição que pode ser modulada ou agravada por fatores ambientais, como dieta dominada por alimentos industrializados e ultraprocessados, sedentarismo e vulnerabilidade social;
  • Está relacionada ao fato dessas populações estarem historicamente sub-representadas em bancos de dados genômicos, o que limita a precisão de diagnósticos e estratégias personalizadas.

Posto que o estudo aponte fortes indícios genéticos de predisposição à obesidade, ele não define uma porcentagem de risco para a população brasileira como um todo, por exemplo, “X% dos brasileiros têm predisposição genética à obesidade”. Quem fizer esta afirmação mentirá.

Isso se deve a:

  • Complexidade do traço (a obesidade é multifatorial);
  • Diferenças regionais e individuais de ancestralidade;
  • Influência preponderante de fatores ambientais na expressão dos genes, principalmente por mecanismos epigenéticos.

Isso evidencia uma susceptibilidade genética diferencial, mas reforça que esse risco não é isolado do contexto social, econômico e ambiental.

Portanto, a predisposição genética não determina o destino metabólico de um indivíduo. Ela articula vulnerabilidades que são acionadas ou amortecidas pelo ambiente social. Em outras palavras: genes carregam potenciais, mas o contexto os agita.

Da genética à geopolítica da fome

É preciso dizer com clareza: o Brasil engorda de forma desigual. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 revelam que 96 milhões de brasileiros portam excesso ponderal, sendo 41 milhões pessoas portadoras de obesidade. O fenômeno afeta mais mulheres, pessoas negras, indígenas e de baixa renda — justamente os segmentos com maior carga de ancestralidade não europeia e com menor acesso a alimentos frescos, tempo de autocuidado e serviços de saúde.

Isso se conecta ao conceito de “gene poupador”, proposto por James Neel em 1962 e revisitado criticamente por antropólogos e geneticistas contemporâneos. A ideia de que populações adaptadas à escassez alimentar desenvolvem genes que favorecem o armazenamento calórico — e que se tornam desvantajosos em contextos de abundância — encontra eco no Brasil, sobretudo em regiões atravessadas por ciclos históricos de fome e miséria, como o semiárido nordestino e comunidades indígenas da Amazônia.

É também nesse ponto que a genética navega pela epidemiologia e sociologia: as condições de vida coloniais e pós-coloniais deixaram cicatrizes metabólicas — visíveis tanto nos mapas de desigualdade social quanto nos mapas de variantes genéticas.

Atenção à saúde personalizada, mas para quem?

As implicações desse estudo para a medicina e nutrição são profundas. Em primeiro lugar, revela-se a urgência de incluir populações não europeias nos bancos genéticos globais, sob risco de perpetuar erros diagnósticos, falhas terapêuticas e uma assistência personalizada que, na prática, marginaliza quem mais precisa dela.

O segundo alerta diz respeito à injustiça biológica cumulativa. Se determinados povos carregam maior carga de variantes associadas à obesidade, é dever ético do Estado garantir que essas populações tenham acesso prioritário a estratégias de prevenção, educação alimentar, práticas interdisciplinares e terapias eficazes.

Negar isso é transformar as dimensões terapêuticas da genômica em mais um dispositivo de seleção excludente.

A interseção histórica com o corpo genético

O corpo brasileiro é de uma gente nova, em formação e contradição, um raciocínio encapsulado por Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil (1995) sobre a identidade nacional; uma construção histórica singular, nascida da miscigenação e das tensões inerentes a esse processo. Esse corpo, agora mapeado em sua intimidade genética, carrega não apenas riscos, mas também uma potência de reconstrução da ciência, de modo mais diverso, justo e sintonizado com as realidades do Sul global.

O avanço da genômica, como o demonstrado no estudo publicado na Science, representa um feito monumental para a ciência brasileira — mas também impõe uma advertência ética: suas descobertas podem ser desviadas para fins de higienismo e eugenia travestidos de saúde pública, como já ocorreu tragicamente na história da humanidade.

A mesma ciência que hoje ilumina as raízes genéticas da obesidade já foi usada para justificar esterilizações forçadas, políticas de pureza racial e extermínios sistemáticos, como no projeto do Terceiro Reich.

Ao identificar predisposições geneticamente conectadas à ancestralidade, corre-se o risco de resgatar discursos biologizantes que hierarquizam corpos e naturalizam desigualdades sociais como falhas individuais ou defeitos genéticos. Se mal interpretados ou instrumentalizados, estudos como esse podem reforçar o controle sanitário seletivo, a medicalização da diferença e a exclusão dos vulneráveis sob a retórica da “ordem” e doprogresso”.

A tentação de usar marcadores genéticos de risco como justificativa para segregações sanitárias ou políticas de saúde seletivas é perigosa e exige vigilância ética. Se não ancoradas em princípios de equidade, justiça retributiva e responsabilidade histórica, as interpretações dos dados podem reforçar desigualdades em vez de combatê-las. A ciência, afinal, não é neutra — e seus caminhos, se não cuidadosamente conduzidos, podem reproduzir as mesmas hierarquias que ela deveria superar.

A importância do estilo de vida: é terminante ressaltar que, independentemente da predisposição genética, motores como dieta equilibrada, atividade física regular e vezos saudáveis desempenham um papel capital na prevenção e no controle da obesidade.

Nas prateleiras dos ultraprocessados e nos desertos alimentares das grandes cidades, o DNA encontra seu gatilho. É nessa encruzilhada entre natureza e cultura que surgem os desafios da saúde pública: não se trata apenas de mudar o comportamento individual, mas de transformar os contextos em que corpos são formados, alimentados e julgados.

O excesso de peso não é apenas uma questão de calorias ou desejo individual; é um fenômeno sob modelagem biopsicossocial, que articula história, biologia, comportamento, sociologia e geopolítica. Compreender isso é divisar caminhos para políticas públicas equitativas, para uma medicina que acolha a diferença e para uma nutrição que respeite, ao mesmo tempo, o genoma e o território.

Culpar o indivíduo é fácil. Enxergar a complexidade da obesidade é urgente.

Genética é herança que instala a vida. É inexorável. Sigmund Freud do alto de seu desfiladeiro mental, na 33ª edição de Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (1933), afirmou: “a biologia é, por assim dizer, o destino”. Anatomia é fortuna? “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis, 1881) — da vida após a morte, se nada realizou de grandioso, ao menos tenha o mérito de não deixar descendência para herdar as dores da existência.

Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.

 

*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.

CRN-1 2970.

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