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Saúde e nutrição com Clayton Camargos: magra e rica?

Desde muito novas, meninas vem aprendido que ser magra é importante. O nutricionista explica a forma que o peso das mulheres é vista ao redor do mundo e como isso pode influenciar até em seu ganho salarial

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Ondas sucessivas de feminismo disseram às mulheres que deveriam se emancipar da vaidade, assim como o fizeram da servidão doméstica e de uma existência definida pela procriação. Entretanto, a interligação entre a magreza e o sucesso pessoal parece seguir cronificado no tecido social.

 

Muitas mulheres eventualmente reconhecem a importância dada aos seus corpos. A noção fictícia de que mulheres perspicazes e ambiciosas, capazes de mensurar seu valor no mercado de trabalho com base em sua intelectualidade e formação educacional, não necessitam atentar para sua aparência física, torna-se difícil de sustentar após uma análise das evidências que demonstram como o peso corporal influencia seus salários e ganhos financeiros. A relação difere em nações subdesenvolvidas, onde os ricos geralmente são mais obesos do que os pobres. As pessoas ricas são mais magras do que as pobres em países como Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha e Coreia do Sul.  

 

O fato de que as pessoas pobres têm maior probabilidade de serem portadoras de excesso ponderal costuma ser explicado por argumentos de que a obesidade, no mundo desenvolvido, é uma característica da miséria. Aqueles que vivenciam circunstâncias de pobreza podem deparar-se com dificuldades na aquisição de alimentos nutritivos. 

 

Por outro lado, podem buscar itens ultraprocessados ou fast food porque não têm disponibilidade para preparar as refeições em casa, ou devido à limitação temporal para a prática de atividades físicas, em razão de ocupações mal remuneradas que frequentemente envolvem jornadas laborais exaustivas e que possuem menor flexibilidade quando comparadas às empreendidas pela classe social mais privilegiada. Ou porque a baixa renda é frequentemente uma consequência da educação limitada, talvez, assim se pensa, que a ausência de educação se estenda à falta de conhecimento sobre como manter um peso saudável.

 

O problema com todas essas explicações é que a correlação entre renda e peso corporal no nível da população em países desenvolvidos é impulsionada quase inteiramente pelas mulheres. Nos Estados Unidos e na Itália, a relação entre renda e peso ou obesidade é plana para os homens e descendente para as mulheres. Na Coreia do Sul, a correlação é positiva para os homens, mas isso é mais do que compensado pela correspondência acentuadamente negativa nas mulheres. Na França, o relacionamento desce suavemente para os homens, mas a inclinação é muito mais acentuada para as mulheres. Esses tipos de padrões parecem manter-se na maioria dos países ricos e prefiguram robustos a várias formas de medir o peso ou a obesidade.

 

Em outras palavras, as mulheres ricas são muito mais magras do que as pobres, mas os homens ricos são quase tão gordos quanto os pobres. Esse desequilíbrio é tão notável que suscita a conjectura de que a magreza possa contribuir para o progresso financeiro feminino.

 

Uma miríade de estudos mostrou que mulheres com sobrepeso ou obesas recebem menos do que suas contrapartes mais magras, enquanto há pouca diferença de salários entre homens obesos e normopesados. Há exceções: um estudo sueco descobriu que homens obesos recebiam menos, mas mulheres obesas não. No entanto, pesquisas nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá e Dinamarca sugerem que as mulheres portadoras de sobrepeso têm salários mais baixos. A penalidade para uma mulher obesa é significativa, custando a ela cerca de 10% de sua renda.

 

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Foto: Unsplash

 

A condenação das mulheres portadoras de excesso ponderal não experimentou uma redução, pois sua quantidade tem aumentado. Antecipamos uma diminuição na penalização decorrente do aumento na proporção de indivíduos em situação de sobrepeso. Em vez disso, o estigma contra os sobrepesados cresceu com seu número; quase dobrou entre 1980 e 2000. Essa tendência sugere que a escassez crescente da magreza resultou em sua supervalorização.

 

A conclusão das investigações mostra que, à medida que as mulheres envelhecem, incorrem nos efeitos de anos de discriminação salarial cumulativa. Controlando outros fatores, seus salários iniciais são mais baixos. Ao longo de suas carreiras profissionais, essas mulheres recebem menos aumentos e promoções. Um estudo mostra que uma mulher obesa de 43 anos recebeu uma penalidade salarial maior em 2004 do que recebia aos 20 anos em 1981, e também que uma mulher obesa de 20 anos recebe uma penalidade salarial maior hoje do que receberia em 1981 aos 20 anos de idade. Isto é, além da obesidade soma-se o etarismo.

 

Isso pode refletir, em parte, nos custos mais altos que funcionários obesos podem entregar a seus empregadores, especialmente nos Estados Unidos. Os prêmios de seguro saúde naquele país geralmente são pagos pelos empregadores, e pessoas sobrepesadas ou obesas tendem a incorrer em custos mais altos, em parte porque sofrem mais problemas de saúde à medida que envelhecem. Ainda assim, não está claro qual raciocínio atuarial foi aplicado justificando a transmissão desses custos exclusivamente às mulheres. Pesquisas conduzidas no Canadá e em nações europeias, onde os sistemas de saúde financiados pelo governo são predominantes, encontram penalidades salariais de tamanho semelhante às mulheres. No Brasil, até o momento não temos investigações que revelem números à luz das dinâmicas canadense e europeia.

 

Enquanto isso, a ideia de que a penalidade por ser obeso pode estar aumentando, e não diminuindo, é apoiada pelos dados do teste de ‘viés implícito’ realizado pela Universidade de Harvard. O estudo pede aos participantes do experimento que associem pessoas de diferentes raças, gênero, orientação sexual e peso corporal com palavras como bom ou ruim.  

 

De modo geral, os achados indicam uma tendência positiva – a discriminação com base em raça e gênero decresceu na última década. As associações desfavoráveis em relação a indivíduos homossexuais reduziram-se em um terço. De outra parte, o peso corporal representa uma exceção – as atitudes aos indivíduos com excesso ponderal se tornaram significativamente mais negativas. Em síntese, considerando a diversidade, atualmente ser de uma etnia não hegemônica, do gênero feminino ou homossexual é potencialmente mais bem recebido do que ser portador de sobrepeso ou obesidade.

 

A realidade da ‘economia da magreza’ parece não ter passado por uma grande transformação ao longo das últimas quatro décadas. Recentemente, as poucas mudanças observadas têm se manifestado no discurso, que agora adotou uma pseudo positividade em relação ao corpo, evitando perseverar a aclamação de tendências dietéticas passageiras. Em lugar das dietas de South Beach, Atkins ou Dukan, as mulheres optam por excluir certos alimentos – aderindo ao estilo de vida sem glúten e lactose, seguindo o veganismo ou reduzindo drasticamente a ingestão de açúcar – sob o pretexto de promoção do bem-estar. Essas escolhas são compreendidas como medidas para se sentirem parte de um pacote de saúde e embelezamento.

 

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Foto: Freepik

 

Até mesmo as revistas femininas sofisticadas agora modelam o ceticismo com relação às narrativas prescritivas sobre padrões estéticos. No entanto, o parasita psicológico da mulher ideal evoluiu para sobreviver em um ecossistema que finge resistir a ela. O feminismo não erradicou a tirania da imagem feminina ideal, pelo contrário, a consolidou e a tornou mais problemática.

 

Como ser muito obeso traz riscos elevados à saúde, alguns podem argumentar que não é um problema que existam incentivos para as mulheres emagrecerem. Porém, isso depende de dois pilares vacilantes da lógica: primeiro, o peso das pessoas realmente está sob seu controle. E segundo, essa vergonha é um motivador eficaz. A percepção de controle total é equivocada. As pessoas frequentemente relatam aumento de peso quando começam a tomar antidepressivos; as mulheres tendem a sofrer de condições como a síndrome do ovário policístico. Algumas descrevem como seu aumento de peso ocorreu após um episódio de violência sexual.

 

Mas pense também no enorme preço que o estigma, a vergonha ou o medo de ficar acima do peso repercute sobre todas as mulheres e meninas que passam a vida se preocupando com o que isso pode custar a elas. É impossível se deslocar pelo mundo como mulher e não perceber o tempo, a energia e o investimento que elas fazem consultando-se com nutricionistas e endocrinologistas, frequentando treinos sob supervisão de personal trainer, lendo livros de dietas, registrando as comidas que comem e acompanhando influenciadores digitais que vendem soluções estapafúrdias para emagrecimento. Ou elegendo transformações mais radicais do contorno corporal por meio de intervenções cirúrgicas. Não por menos, até 2022, o Brasil ocupava o 2o lugar no ranking mundial de cirurgias plásticas, sendo as lipoaspirações a tecnologia mais procurada.  

 

Aqueles que experimentaram uma dieta baseada em suco verde ou sopa de repolho compreenderão que a busca pela magreza pode comprometer outras atividades importantes que mulheres e jovens podem desempenhar, como a capacidade de se concentrar nos estudos e no trabalho, bem como desfrutar da alimentação e participar de interações relacionais.

 

De acordo com investigações científicas, meninas a partir dos seis anos de idade reconhecem a expectativa de que devem ser magras. Então, adolescentes dominadas por ambições repentinas de beleza, ‘contagiam’ dismorfias de imagem corporal umas às outras como um ‘vírus’. A tragédia é que não há escapatória. A maioria das mulheres parece tentar se conformar. Algumas optam por não fazê-lo. Muitas simplesmente falham. Mas qualquer que seja o caminho escolhido, parece ter um alto custo.  

 

*Clayton Camargos é pós graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de  Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.