As recentes declarações da modelo e influenciadora digital Maya Massafera sobre a associação entre magreza e elite econômica, em antagonismo à obesidade e à pobreza, instigaram um debate importante sobre os padrões corporais e suas implicações sociais.
Em um vídeo publicado em suas redes sociais, Maya afirmou que “gente rica ou francesa ou que entende muito de moda é apaixonada por magreza” […] “gente mais simples gosta de gente mais cheinha. Elite, moda (SIC), gosta de gente mais magra”.
Há, no entanto, um ponto cego em sua fala: ao reforçar estereótipos sobre a magreza como símbolo de sucesso, a influenciadora parece esquecer que, enquanto mulher trans, seu próprio corpo já é historicamente objeto de conflitos sociais, oscilando entre desejo, exotização e repulsa.
O mesmo fenômeno ocorre com os corpos obesos, que também são alvo de um olhar ambíguo, sendo simultaneamente erotizados e rejeitados. O corpo trans e o corpo obeso são localizados perifericamente aos desejos standardizados da sociedade, isto é, a revelação dos mecanismos de exclusão e normatização do corpo.
O endereçamento da magreza à “gente francesa”, reforça a idealização da beleza eurocêntrica como um objeto sofisticado de consumo, como uma bolsa de grife cara, e que presume uma imagem obesa à latinidade americana.
A magreza é uma construção historicamente ligada ao racismo e à moralidade ocidental. Como analisa Sabrina Strings em Fearing the Black Body: The Racial Origins of Fat Phobia (2019), durante os séculos XVIII e XIX, o corpo magro passou a ser associado à virtude e ao autocontrole europeu, enquanto a gordura foi racializada e vinculada a povos colonizados, considerados inferiores. Dessa forma, a repulsa aos corpos obesos não é apenas uma questão estética, mas um dispositivo de classificação social e racial.
A gordura feminina foi, em determinados contextos históricos, associada à fertilidade e à abundância, mas, com o avanço do capitalismo e da moral protestante, passou a ser vista como um signo de descontrole e inferioridade. De acordo com Bordo em Unbearable Weight: Feminism, Western Culture, and the Body (1993), a gordura tornou-se, assim, um marcador social de desvio, em oposição ao corpo magro, disciplinado e autocontrolado.
Em algumas sociedades africanas tradicionais, a corpulência era valorizada como símbolo de prosperidade e saúde. Já em certos períodos da história europeia, como no Renascimento, corpos mais voluptuosos eram considerados ideais de beleza.
Na década de 1950, figuras como Marilyn Monroe representavam o ideal de beleza com curvas acentuadas. Já nas décadas seguintes, especialmente nos anos 1990, a indústria da moda promoveu a magreza extrema como padrão, tendo a modelo Kate Moss como resumo fashion daquela época, influenciando as percepções globais sobre o corpo ideal.
Portanto, a preferência por corpos magros ou mais cheios está intrinsecamente ligada a construções culturais e espaços temporais, não podendo ser generalizada como uma característica de classes sociais específicas.
As falas de Maya Massafera podem ser interpretadas como uma manifestação de gordofobia, que é o preconceito contra pessoas gordas, e aporofobia, que é a aversão aos pobres. Ao associar a magreza à elite e a obesidade às classes mais simples, reforça-se um estigma que marginaliza indivíduos com corpos diversos à idealização.
Tanto o corpo trans quanto o obeso habitam um território liminar dentro dos códigos estéticos e normativos da sociedade. O desejo por ambos frequentemente se manifesta na pornografia, no consumo fetichizado e em contextos informais, mas, em relações sociais convencionais, são relegados à invisibilidade ou ao escárnio.
Pierre Bourdieu em A Distinção (1979), descreve como o corpo opera como um capital simbólico: corpos magros, atléticos e disciplinados são valorizados porque representam capital cultural e social. No entanto, esse capital não se distribui de maneira homogênea entre todos os sujeitos. Mulheres trans brancas e magras podem ser mais aceitas em determinados espaços, mas continuam enfrentando barreiras sistêmicas por conta da transfobia estrutural.
Da mesma forma, a imposição da magreza como requisito de pertencimento reforça a patologização da obesidade.
O relatório Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico (VIGITEL, 2023) aponta que, no Brasil, 60% da população adulta tem sobrepeso e 25% porta obesidade. De outra parte, transtornos alimentares como anorexia e bulimia afetam milhões de pessoas mundialmente. Estima-se que mais de 70 milhões de pessoas no mundo sofram de algum transtorno alimentar, incluindo anorexia e bulimia. No Brasil, cerca de 1% da população feminina é afetada pela anorexia nervosa, enquanto a bulimia atinge até 5%.
Enquanto populações mais ricas têm acesso a tratamentos dietéticos, remédios emagrecedores e academias de ginástica, classes mais pobres frequentemente recorrem a alimentos ultraprocessados devido ao baixo custo e à praticidade, agravando índices de obesidade e doenças associadas.
O paradoxo brasileiro, portanto, é duplo: de um lado, a fome ainda assola milhões, situando o país no mapa da fome mundial; de outro, o avanço da obesidade reflete um modelo de consumo desigual e um ambiente alimentar que não legitima escolhas saudáveis.
A glamourização da magreza extrema, como apontado por Massafera, não leva em conta que a obsessão pelo emagrecimento é, ela mesma, um mecanismo de opressão e exclusão, tanto para corpos trans quanto aos obesos.
No entanto, ao reproduzir um discurso que subordina economicamente os corpos obesos e os associa à pobreza, Maya desloca-se do lugar da vulnerabilidade para ocupar circunstancialmente uma posição de garantia simbólica, exercendo sobre outros o mesmo tipo de opressão do qual ela mesma é alvo.
Num determinado trecho do seu discurso, Maya afirma que não alcançou a magreza necessária para ser credenciada como membro da “elite”. Inclusive, a sua transição de gênero compreende a “perda” de massa muscular. Os músculos são um dos bens mais preciosos da nossa composição corporal, seu catabolismo significa um sistema imunológico mais vulnerável às enfermidades oportunistas e, necessariamente, um envelhecimento mal sucedido e sem autonomia.
O que a modelo talvez ignore em sua avaliação é que a magreza extrema, quando imposta como norma, não significa necessariamente uma incorporação plenária à elite, mas sim um processo de conformidade a um ideal que, em derradeira instância, reforça a exclusão.
Em Microfísica do Poder, Michel Foucault (1979) demonstra como o poder não se concentra apenas em instituições hierárquicas, mas se dissemina em microestruturas que regulam corpos e subjetividades. O poder, para Foucault, não é apenas repressivo, mas produtivo: ele fabrica verdades, disciplina gestos, normatiza aparências e define pertencimentos. Poder é poder.
Dessa forma, a imposição da magreza como símbolo de superioridade econômica não apenas reforça a gordofobia estrutural, mas evidencia um fenômeno recorrente nos regimes de poder: o de que aqueles que foram historicamente oprimidos, ao acessarem espaços antes inacessíveis, podem internalizar e reproduzir as mesmas lógicas de isolamento contra outros corpos dissidentes.
A gordofobia, a aporofobia e a transfobia são manifestações de preconceitos estruturais que reforçam a apartação social. Ao conectar características físicas a valores morais ou status social, perpetua-se a discriminação e a marginalização de grupos específicos. Esses preconceitos estão intrinsecamente ligados à luta de classes, onde corpos que não se encaixam nos padrões impostos são vistos como inferiores ou menos dignos.
Do alto dos seus privilégios, que não são poucos, Maya alega que não tem nenhuma objeção aos corpos gordos e que, desde antes de se transicionar, tem uma relação solidária aos portadores de obesidade. É aquela velha história que volta e meia escutamos: “não tenho nada contra os gays, até tenho amigos veados”. Numa outra dimensão pejorativa: quando você trabalha num ambiente de gente muito rica, com efeito, a elite, você percebe que honestidade é coisa de pobre.
Em última análise, Massafera é mais uma celebridade problemática, e em combustão, que ocupa camarote nas redes sociais.
Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
Clayton Camargos é sanitarista pós graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.