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Saúde e nutrição com Clayton Camargos: feliz Dia do Nutricionista

É importante preservar a saúde por meio de uma boa alimentação e prática regular de exercícios, mas é importante saber dosar e observar que o "terrorismo nutricional" pode estar presente até na alimentação considerada saudável

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Quando Zhanna Samsonova, que não possuía graduação em nutrição, compartilhou semanalmente em suas contas no Instagram e TikTok sobre sua dieta à base de frutas tropicais cruas, foi aclamada por seus milhares de seguidores como uma “sacerdotisa” inspiradora. A influenciadora russa, que residia no sudeste asiático, restringiu o consumo de carnes de vaca, frango, peixe, castanhas, laticínios, grãos e até água, subsistindo exclusivamente por meio de frutas, vegetais e seus sucos.

 

Ela faleceu recentemente aos 39 anos de idade; sua mãe atribuiu a causa da morte a uma “infecção semelhante à cólera”, no entanto, amigos afirmam que ela estava severamente desnutrida. Nas redes sociais, Samsonova reformulou o que agora podemos concordar ser uma alimentação extremamente desequilibrada como “a dieta definitiva” que poderia “tornar as pessoas mais saudáveis”. Sua morte levantou ainda mais questões sobre a indústria de bem-estar e a sua tendência para transformar a ortorexia (a obsessão com alimentação saudável) em algo aspiracional.

 

Em casos como este, há claramente problemas de saúde mental, e foi o disfarce de bem-estar que lhe permitiu mentir para si mesma e para os outros. O ponto é principalmente o compartilhamento de mensagens ridiculamente infundadas para seus seguidores. É comparável a testemunhar alguém dirigindo além da velocidade permitida em uma estrada: a pessoa pode prosseguir por sua própria responsabilidade, porém deve considerar a segurança dos demais.

 

“Desintoxicar” é um descalabro e não existe “reequilíbrio”. Nós temos duas magníficas ferramentas de desintoxicação – os nossos fígado e rins – e não há absolutamente nenhuma necessidade de beber exclusivamente suco verde durante cinco dias para limpar o intestino ou qualquer outra bobagem que persevere sendo dita.

 

Sim, colocar substâncias tóxicas em nosso corpo é terrível e, claro, apóio a crítica do que consumimos e a redução da carga tóxica, sejam refrigerantes, açúcar, alimentos ultraprocessados e industrializados, cigarros, drogas psicoativas, ou excesso de bebidas alcoólicas. O que deslouvo é a exploração do empreendimento de bem-estar ao empacotar e comercializar a perspectiva de “desintoxicação” visando dividendos.

 

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É verdade que no Brasil, essa indústria também possui representantes igualmente controversos. Considero que uma das principais porta-estandarte é a “coach” Maíra Cardi, que também não é nutricionista, com milhares de seguidores e um próspero programa de emagrecimento. O “terrorismo nutricional” é uma das principais táticas para engajar o público-alvo em torno do seu fundamentalismo de restrições alimentares. Em um episódio corrente, ela associou o consumo de bolo de chocolate a problemas de saúde, alegando que essa sobremesa resultaria em diversas doenças, como hipercolesterolemia, infarto e outras complicações cardíacas.

 

Embora uma alimentação saudável em meio à epidemia de obesidade seja essencial, de outra parte, os conselhos nutricionais comercializados por influenciadores de bem-estar podem frequentemente se mostrar falíveis. Muitos advogam pela diminuição do consumo de laticínios, o que é preocupante. Segundo o Ministério da Saúde, estima-se que cerca de 50% das mulheres e 20% dos homens com idade igual ou superior a 50 anos sofrerão uma fratura osteoporótica ao longo da vida; um problema que tem sido associado à ingestão de cálcio insuficiente na adolescência e na casa dos vinte anos de idade.

 

Da mesma forma, mulheres como a falecida Samsonova, ao encorajarem seus seguidores a adotarem uma dieta vegana crua, poderão promover uma abordagem excessivamente restritiva que, em curto prazo, levará à desnutrição. Esse comportamento se torna especialmente problemático àquelas que estão tentando engravidar, já que o constrangimento na ingestão de gorduras repercutirá em limitações na capacidade reprodutiva.  

 

Sou partidário do consumo de carne. Passamos milhões de anos evoluindo enquanto comíamos proteínas de origem animal, e nossos corpos demandam seus lipídeos de alto teor energético. A maestria na manipulação do fogo aprimorou a disponibilidade nutricional dos alimentos, sustentando nosso status onívoro. Porém, a evolução não nos destinou à ingestão dos inúmeros compostos químicos incorporados à dieta. De toda sorte, a solução não é sermos veganos de alimentos crus; se assim fosse, teríamos dentes diferentes e um intestino muito mais longo.

 

Diante das numerosas postagens de influenciadores digitais, surge uma narrativa que desqualifica carne, glúten e laticínios, retratando-os como agentes morbígenos que comprometem a saúde intestinal. Alega-se que a ascensão a um patamar superior de “dieta pura” exige um refreamento rígido da ingestão alimentar, chegando a uma quase exclusividade de vegetais.

 

Não por acaso, quase todos os principais formadores de opinião sobre bem-estar também são magros e atraentes. Com efeito, o discurso muitas vezes se confunde com a busca pelo emagrecimento. Nos perfis desses indivíduos, é nítida a mensagem subjacente: magreza é sinônimo de saúde, e saúde é sinônimo de magreza. Sob essa perspectiva, a indústria se desloca de uma pauta de bem-estar para um retorno aos não tão distantes rituais de radicalismo dietético. Um comportamento que fingimos ter desaparecido na nova era de positividade corporal.

 

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Em 1967, o francês Gui Debord publicou a “Sociedade do Espetáculo”, uma obra que trata sobre uma realidade impostora assentada apenas nas imagens que vemos e no ambiente construído a partir do que vivemos. Os aplausos autenticariam uma existência de sucesso. No espetáculo digital, gente como a russa Samsonova ou a brasileira Maíra Cardi engendram invenções sobre uma vida saudável fantasiadas de pós-verdades com elogios monetizados por meio de cliques, curtidas, comentários, compartilhamentos, isto é, engajamento! Como bem afirmado pelo multifilósofo italiano Umberto Eco: “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. E isso pode enricar fortunas.

 

Por ano, globalmente, a indústria de bem-estar arrecada aproximadamente 3,5 trilhões de dólares. Essa cifra notável evidencia a persuasão intrínseca de suas alegações pseudocientíficas; e como muitos de nós acreditamos que um futuro perfeito, livre de doenças, excesso de peso, ansiedade e depressão nos aguarda, se apenas nos desintoxicarmos corretamente e aprendermos como “reequilibrar” nossos corpos.

 

De outra parte, percebo que o conceito de bem-estar pode servir como um véu para ocultar transtornos alimentares de muitas pessoas. À medida que constroem uma ficção virtual e a internalizam, essa conduta se torna arraigada e rotineira. Esses indivíduos realmente acreditam que suas escolhas estão corretas, especialmente quando a claque outorga sua consagração.

 

Embora a dieta compreenda a maior parte do conceito de bem-estar, o exagero de exercícios físicos pode ser igualmente preocupante. Pesquisadores da área de terapia intensiva têm observado um aumento na ocorrência de rabdomiólise – uma condição aguda na qual injúrias musculares degradam mioglobina na corrente sanguínea. E também pode ser causada por excesso de exercícios físicos intensos combinados com déficit calórico, alta ingestão proteica e esteroides anabolizantes. É uma manifestação grave, que pode levar à insuficiência renal e até à morte.

 

A cultura do bem-estar justapõe-se à profusão de alimentos não saudáveis que nos cercam sempre que estamos fora de casa. Há um constante foco em diretrizes alimentares, técnicas culinárias e seleção de produtos – essa presença é ubíqua e a evasão torna-se complexa. Destarte, o bem-estar apresenta-se como um porto seguro àqueles que anseiam por ele, ainda mais quando homologado por modelos atraentes que aparentam hits.

 

Cabe lembrar que o negócio de “dietas da moda” não é um fenômeno recente, tampouco seus facilitadores. Inclusive, na sua maioria, sem uma formação básica na área de nutrição, muitas vezes sequer são profissionais de saúde. Todavia,  em termos de velocidade e alcance. 

 

Mesmo que ocorra um controle rigoroso por parte das agências reguladoras; a fiscalização não perfará o vasto conjunto de supostos especialistas, tanto genuínos quanto charlatães, que se multiplicam exponencialmente. Essa dinâmica reforça o raciocínio convencional: a existência de vendedores pressupõe a presença de compradores.

 

Observo cada vez mais o mercado de bem-estar como outra deletéria importação estadunidense, que gradualmente contamina a cultura nacional. Muitos indivíduos com atitudes transtornadas em relação à alimentação acreditam fervorosamente no que dizem e estão desesperados para espalhar suas doutrinas. 

 

No entanto, quando a conduta nutricional transita para o domínio das crenças, em oposição à documentação científica, adentramos um território perigoso. O que comemos nunca deveria assemelhar-se a uma penitência religiosa. Lamentavelmente, nos dias atuais, isso ocorre com frequência.

 

Em 31/08 celebra-se o Dia do Nutricionista. Trata-se, sobretudo, de um profissional constituinte do setor da saúde, e não de um líder espiritual.

 

*Clayton Camargos é pós graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de  Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.