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Saúde e nutrição com Clayton Camargos: “Eu não consigo parar de comer!”

A alimentação hedônica, ou seja, o hábito de comer por prazer, está sendo estudada como um dos principais impulsionadores da obesidade

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Por milênios, o organismo humano manteve um impulso biológico feroz para comer e manter o equilíbrio energético. Quando utilizamos mais calorias do que ingerimos, nosso corpo reage aumentando o apetite e atrasando a mensagem de saciedade. 

 

No cérebro, uma série de sinais se sincroniza: os peptídeos estimuladores (orexígenos) e os supressores da fome (anorexígenos). Especificamente, ocorre a liberação de mais hormônio da fome, a grelina, e menos dos peptídeos que permitem que o intestino sinalize ao cérebro para parar de comer, a leptina. Esse conceito bem estabelecido é conhecido como homeostase.

 

No corpo, os hormônios sinalizam quando os estoques de energia estão diminuindo. Quando isso ocorre, os níveis de grelina começam a aumentar, mas são suprimidos assim que a pessoa começa a comer. Além disso, à medida que a comida percorre o organismo, uma série de respostas de saciedade (que indicam plenitude prandial) são desencadeadas, começando na boca e continuando pelo estômago e intestino delgado. Esses sinais comunicam ao cérebro: “Ei, estamos recebendo comida aqui embaixo!”.

 

Sem surpresa, a melhor maneira de se livrar da fome homeostática é comer. E a estratégia mais bem sucedida para manter essa sensação de plenitude por um período de tempo saudável é escolher alimentos nutritivos que nos saciam.

 

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No entanto, as investigações contam que as dietas ocidentais exploraram um impulso diferente para comer: enquanto a homeostase é controlada por uma articulação hormonal entre o intestino e o cérebro, esse desejo separado de comer está centrado no sistema de recompensa cerebral, que também está envolvido em vícios. Isso é conhecido como ‘comer hedônico’, em referência a Hedonê, a deusa grega do prazer. O apetite hedônico é alimentado principalmente por alimentos gordurosos, açucarados e artificialmente melhorados.

 

A ‘fome hedônica’ é um impulso primitivo de consumir alimentos deliciosos, mesmo quando não estamos fisicamente com fome. É comum buscar conforto em certos alimentos para aliviar o stress, combater o tédio e acalmar os nervos, porém isso pode se tornar um sério problema de saúde quando parece que não conseguimos encontrar o botão de pausa, mesmo quando nosso estômago está cheio, mas nossa mente ainda deseja comida.

 

Éons atrás, os primeiros seres humanos aprenderam rapidamente que os alimentos naturalmente doces raramente eram venenosos e, portanto, seguros para consumo. Naquela época, as comidas ricas em energia eram relativamente raras. Quando nossos ancestrais encontravam essas guloseimas, o sistema de recompensa hedônico os incentivava a continuar comendo, o que os ajudava a evitar a fome.

 

Entretanto, nossos apetites hedônicos se voltaram contra nós. A alimentação hedônica agora está sendo estudada como um dos principais impulsionadores da obesidade. Isso ocorre porque a sociedade moderna está saturada de alimentos altamente processados e fáceis de acessar, que nossos cérebros em busca de prazer nos estimulam a comer.

 

Os alimentos doces dominam o cérebro com o sinal químico da dopamina. Uma vez acionados, as pessoas podem procurá-los repetidamente devido ao choque de prazer que proporcionam. Sob essa perspectiva, o desejo por doce de leite pode ser tão complexo quanto por heroína ou álcool. Criticamente, assim como nossos corpos não precisam de substâncias viciantes, também não demandam calorias extras provenientes das preparações açucaradas.

 

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A epidemia de obesidade não tem nada a ver com necessidade energética, em vez disso, se associa com querer mais comida e do prazer conferido por certos alimentos, sendo as calorias um acompanhamento desse regozijo. 

 

Esses gatilhos saborosos estão por toda parte: segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS, itens ultraprocessados, como refrigerantes e sucos de frutas, pães, cereais matinais, batatas fritas, embutidos e pizzas congeladas representam quase 60% do consumo calórico diário nos países desenvolvidos. Eles são uma alquimia de açúcar, sal, gorduras, aromatizantes artificiais, cores e texturas – uma receita industrial calibrada com precisão à tentação.

 

Os alimentos hiperpalatáveis ativam o centro de recompensa do cérebro e desencadeiam a liberação de “produtos químicos do bem-estar” que podem nos deixar constantemente desejando mais determinadas comidas. Além disso, devido à sua fácil digestão, produzem um aumento acentuado  do hormônio insulina e sua queda subsequente causa desequilíbrio nos níveis de glicose no sangue, deixando a pessoa com fome em um curto espaço de tempo.

 

Uma das questões desses alimentos é que são ricos em calorias, gorduras saturadas, carboidratos simples e sódio – pautando a elevação ponderal. Além disso, a ingestão regular desses itens embota o sistema de regulação do apetite e anula os sinais de saciedade, a razão pela qual estamos em constante estado de fome, mesmo depois de termos comido o suficiente!
 

Depois de aumentar o peso, muitas vezes é difícil eliminá-lo e os esforços nesse sentido geralmente não têm sucesso. Estima-se que a redução de 1 kg resulte em um aumento de 130 kcal por dia na ingestão calórica. Portanto, se alguém emagrecer 5 kg, seu corpo provavelmente pedirá um consumo adicional de 650 kcal por dia.

 

O organismo recupera o peso emagrecido – e mais alguns – por meio de duas rotas simultâneas: reduzindo o gasto energético, o que significa que precisamos de menos calorias para manter o corpo funcionando em repouso; e aumentando os hormônios da fome e diminuindo os que nos fazem sentir satisfeitos. O resultado líquido? Você vai querer comer mais do que antes de emagrecer.

 

Os seres humanos de hoje estão totalmente despreparados para lidar com as consequências dessa dinâmica biológica. Nossos corpos são essencialmente os mesmos que tínhamos há 10.000 anos, quando vivíamos na natureza selvagem. Enquanto a fome homeostática possui um sinal intrínseco para encerrar, regular a alimentação hedônica é mais desafiador. Um dos aprendizados é que não há um botão de desligar quando se trata de comer por prazer, especialmente quando já consumimos mais do que o necessário.

 

Conforme analisei na coluna anterior, as evidências científicas mostram que o “comer emocional e por stress” é um dos principais gatilhos para a compulsão alimentar. Sob condições estressantes, muitos de nós recorremos à comida como uma forma de nos sentirmos melhor, mesmo que não manifestemos fome física.

 

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Lembre-se de que, embora a maioria da alimentação emocional esteja associada a sentimentos desagradáveis ou de vazio, também pode ser desencadeada por emoções positivas. Desde tenra idade, somos ‘recompensados’ por ocasiões como aniversários, cumprimento de metas ou celebração de feriados e eventos felizes. Além dos gatilhos comuns, como stress, tédio ou emoções intensas, também somos influenciados socialmente, começando com recompensas inadequadas durante a infância e até mesmo subornos envolvendo alimentos açucarados. Cabe a nós reconhecer e romper esses padrões.

Aqui estão algumas dicas:

 

  • Certifique-se de comer sempre sentado, independentemente da situação.

 

  • Tenha consciência do quanto você está comendo: pese ou meça suas porções, especialmente quando estiver em casa.

 

  • Faça um plano: todas as noites, não importa o que aconteça, escreva seu plano alimentar para o dia seguinte.

 

  • No final do dia, faça uma avaliação de tudo o que você comeu e verifique se seguiu o plano estabelecido. Analise também as situações e sentimentos que levaram a eventuais escapadas da dieta.

 

  • Ao experimentar estados de ansiedade, tristeza ou alegria intensa, evite usar alimentos ou refeições específicas como compensação ou celebração. Em vez disso, busque fazer uma caminhada ou colocar o corpo em movimento com alguma atividade ou exercício físico.

 

Nossa relação com a comida mudou significativamente, e agora parece que estamos vivendo para comer, em vez de comer para viver. O stress e as questões psicológicas também podem desencadear a liberação de sinais cerebrais que estimulam o apetite. Estamos cada vez mais influenciados por sugestões externas ao decidir quando e o que comer. No entanto, cada um de nós tem o poder de redefinir nossa relação com a comida, reconhecendo os fatores que nos levam a comer. É importante buscar uma abordagem em que ‘comemos para viver, em vez de viver para comer’.

 

Clayton Camargos é pós graduado pela Fiocruz, ex Coordenador Nacional de Promoção da Saúde da Fundação de Seguridade Social, Subsecretário de Saúde do DF, professor da UCB e atualmente proprietário da clínica Metafísicos.