Em tempos instantâneos de culto à imagem, o número que brilha na balança é, para muitos, o veredito final sobre o sucesso ou fracasso de um processo de emagrecimento. Entretanto, o peso corporal absoluto, isoladamente, é um marcador raso, impreciso e até mesmo ilusório.
É perfeitamente possível “emagrecer” na balança e continuar metabolicamente inflamado, funcionalmente comprometido e esteticamente insatisfeito. Por isso, o chamado à razão se impõe: é preciso emagrecer gordura — e não apenas peso na balança.
A redução de peso pode refletir perda de água, glicogênio hepático e muscular, músculos, massa óssea ou adiposidade. Cada uma dessas perdas tem repercussões distintas sobre a saúde, a composição corporal e o metabolismo. O verdadeiro emagrecimento consiste predominantemente na redução da massa gorda, especialmente a gordura visceral, concomitante à preservação — ou idealmente, ao aumento — da massa muscular.
Ignorar essa distinção é comum e perigoso. Dietas radicais, jejuns desbalanceados, regimes de eliminação ou uso indevido de diuréticos podem gerar uma perda rápida de peso que encanta os olhos — mas engana o organismo. O catabolismo muscular desacelera o metabolismo basal, compromete a estabilidade articular, reduz a sensibilidade insulínica e acentua o risco de reganho ponderal, numa clássica “armadilha metabólica”.
Na mecânica fisiológica do emagrecimento, o tecido adiposo é uma estrutura complexa, com propriedades endócrinas, imunológicas e energéticas. Ele armazena lipídios sob forma de triglicerídeos, e sua mobilização ocorre pela ativação da lipólise em situações de déficit energético.
No entanto, de acordo com Pontzer em Burn: The Misunderstood Science of Metabolism, de 2021, o organismo humano é plasmado pela biologia evolucionista — e essa modelagem favorece a manutenção das reservas energéticas, em um legado herdado da escassez alimentar ancestral.
Ao iniciar um processo de emagrecimento, o organismo ativa mecanismos de defesa: reduz o gasto energético em repouso (via termogênese adaptativa), modula a expressão de hormônios como a leptina e a grelina, eleva o apetite e promove resistência à continuidade da perda de gordura. Trata-se de um ajuste neuroendócrino-orquestrado para garantir a homeostase energética, dificultando o emagrecimento sustentado.
A base científica para o emagrecimento esteado é tripartite: déficit calórico controlado, prática regular de exercício físico (aeróbico e de resistência) e, quando indicado, farmacoterapia.
O déficit calórico deve ser planejado de forma personalizada, respeitando as necessidades energéticas, a taxa metabólica basal e a composição corporal de cada indivíduo. A restrição energética severa, embora eficaz a curto prazo, é contraproducente a médio e longo prazo, favorecendo a perda de massa muscular e a desaceleração metabólica.
A prática de exercícios físicos, em especial o treinamento resistido (musculação), é um determinante chave na preservação da massa muscular durante o emagrecimento. A musculatura é metabolicamente ativa, contribui para o equilíbrio hormonal, o controle glicêmico e a funcionalidade global — e seu comprometimento tem implicações severas na senescência, na imunidade e na saúde óssea.
A farmacoterapia, por sua vez, é uma aliada estratégica em casos selecionados. Agentes como a liraglutida e a semaglutida (análogos do GLP-1) ou a tirzepatida (agonista dual GLP-1/GIP), mostraram eficácia significativa na redução de gordura visceral e subcutânea ao promoverem saciedade, desaceleração do esvaziamento gástrico e melhora da sensibilidade insulínica. Contudo, sua indicação exige critério clínico e acompanhamento multiprofissional rigoroso.
Fisiologicamente, diminuir peso às custas da massa muscular é um tiro no pé. Essa perda compromete a taxa metabólica basal, dificulta a mobilização de gordura, enfraquece o sistema imune e prejudica a capacidade funcional. Em pessoas idosas, está associada à sarcopenia e ao risco de quedas, fraturas e perda de autonomia. É o paradoxo do catabolismo muscular.
Além disso, a massa muscular desempenha papel regulador no eixo cérebro-intestino, atua como reservatório de aminoácidos, participa da regulação hormonal, imunológica e é fortemente associada ao envelhecimento bem-sucedido. Portanto, a melhor estratégia não é apenas emagrecer — é harmonizar a composição corporal, dentro das possibilidades, recompondo gordura por músculo.
Estudos longitudinais revelam que cerca de 80% das pessoas que perdem peso voltam a ganhá-lo em até cinco anos. Isso ocorre por múltiplas razões: adaptações hormonais, questões psicológicas, dificuldades sociais, ambiente obesogênico, recaídas comportamentais e o retorno de padrões alimentares disfuncionais.
Comer não é apenas um ato fisiológico, mas uma linguagem afetiva, um rito de pertencimento e um dispositivo de reconhecimento social. O alimento é, para muitos, um substituto do carinho, um gesto de consolo, um pacto silencioso com a memória.
Donald Winnicott em O ambiente e os processos de maturação (1983), nos diz que a formação do eu se dá na relação com o ambiente, e a ausência de cuidados suficientemente bons na infância frequentemente deixa marcas que se manifestam em desorganizações alimentares, onde o corpo busca, por meio do comer, reparar falhas primordiais de acolhimento.
Emagrecer, portanto, não é simplesmente perder peso; é lidar com a desposse de símbolos confortáveis e reorganizar narrativas internas. Renunciar a um alimento pode significar, inconscientemente, desertar o afeto que ele representa. Precisamos compreender a compulsão não como fraqueza de caráter, mas como defesa psíquica, uma tentativa de dar contorno ao vazio existencial.
Pierre Bourdieu oferece um instrumental potente para compreender os atravessamentos sociais que estruturam o corpo e o desejo. Em A distinção: crítica social do julgamento (1979), o autor revela como os hábitos alimentares são signos de classe, expressões incorporadas do capital cultural. O corpo magro, esportivo e “controlado” é uma estética do poder, enquanto o corpo gordo é muitas vezes lido como negligente, desorganizado — um julgamento que oculta desigualdades estruturais e naturaliza opressões simbólicas.
Portanto, o emagrecimento não ocorre em vácuo: ele é transposto por expectativas sociais, normas estéticas, pressões morais e desigualdades de acesso a bens simbólicos e materiais. Para muitos, emagrecer exige romper com heranças emocionais e lógicas sociais profundamente inveteradas. Trata-se de um processo que envolve não apenas disciplina, mas, sobretudo, elaboração — psíquica, afetiva e social.
Winnicott argumenta que o amadurecimento não é a adaptação à realidade, mas a construção de um espaço potencial onde o sujeito possa criar sua própria forma de estar no mundo. E o corpo — esse corpo que emagrece — também é criação.
O emagrecimento deve ser entendido como uma reconfiguração da composição corporal e mental, e não como um simples ajuste de dígitos na balança. A estética pode ser um motivador legítimo, mas jamais o único. O verdadeiro propósito deve ser saúde, funcionalidade, anos de vida com qualidade — e isso exige método, ciência e tempo.
Para além da balança, há exames clínicos, medidas de circunferência abdominal, avaliações de composição corporal por bioimpedância ou densitometria de raio-X de dupla absorção (DEXA), e essencialmente, sinais funcionais: disposição, qualidade do sono, controle da glicemia, resistência física, autoestima e pacificação com a própria imagem.
Não se trata tão somente de perder peso — trata-se de encontrar um novo centro gravitacional, integrando biologia e filosofia. Um corpo mais leve, sim — no entanto, máxime, ultra consciente da sua capacidade de revisão crítica e superação de desafios.
Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.