Imagine um país onde a fartura virou epidemia de doença crônica. Onde as prateleiras coloridas dos supermercados escondem doenças e desigualdades sociais. Onde as promessas de conveniência seduzem, mas matam. Onde a comida perdeu o sabor de casa e ganhou o gosto artificial das corporações. Esta é a história de como a indústria alimentícia tomou conta do prato dos brasileiros, e como isso ainda define quem vive e quem morre.
Entre as décadas de 1970 e 1990, o Brasil viveu uma revolução silenciosa e devastadora à mesa. O arroz com feijão, símbolos de fartura e afeto, começaram a ceder lugar para embalagens coloridas e crocantes. Uma avalanche de produtos ultraprocessados, cheios de promessas vazias, tomou de assalto nossas cozinhas e, com elas, nossa saúde e cultura alimentar.
Essa explosão de consumo não aconteceu por acaso. Foi resultado de um ensarilhado de fatores econômicos, políticos e culturais que mudaram para sempre a forma como o brasileiro se alimenta. E, junto com esses novos hábitos, vieram os flagelos de obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares que hoje nos infestam.
A abertura econômica e o apetite do mercado
Com a abertura dos mercados e a redução das tarifas de importação, especialmente nos anos 1990, o Brasil virou um banquete para multinacionais como Nestlé, Coca-Cola, Kraft Foods e McDonald’s. Essas empresas invadiram as cidades com campanhas publicitárias irresistíveis, vendendo não apenas produtos, mas um estilo de vida: rápido, prático, globalizado e, sobretudo, viciante.
O marketing como vetor de desejo
A televisão, já consolidada como a voz da época, transformou as propagandas em espetáculos que encantavam as crianças e seduziam os adultos. Brindes, mascotes e jingles viraram símbolos de pertencimento. Comer não era mais só nutrir o corpo: era fazer parte de algo maior, de um sonho de modernidade.
A roça abandonada, o supermercado coroado
As décadas de 1980 e 1990 marcaram a consolidação do agronegócio, da cadeia do milho, da soja e do trigo, bases baratas para a indústria de ultraprocessados (farinhas refinadas, óleos vegetais, xaropes de glicose etc.). As indústrias passaram a dominar desde a produção agrícola até o processamento e distribuição de alimentos, deslocando a agricultura familiar e os sistemas alimentares locais.
O êxodo rural que havia se intensificado desde os anos 1970 ganhou novo impulso. Famílias abandonaram o campo em busca de oportunidades urbanas, trocando o cultivo da terra pela dependência do supermercado.
As feiras livres, as roças e quintais com ervas, hortaliças e os modos tradicionais de preparo foram sendo substituídos por produtos industrializados, empilhados em prateleiras sob o discurso da modernidade. O tempo de cozinhar foi encurtado e com ele o vínculo cultural com os alimentos.
Nos anos 1980, a inflação galopante e as crises econômicas empurraram ainda mais famílias para os braços da indústria alimentícia. O alimento fresco tornou-se um luxo e menos disponível nas periferias urbanas. A indústria soube responder com produtos baratos, altamente palatáveis, de longa duração e fáceis de distribuir.
O que se vendia como conveniência era, na verdade, uma nova expressão da desigualdade alimentar: uma fome disfarçada de fartura calórica, porém, carente de nutrientes.
Não foi apenas o cardápio que mudou. Foi todo um modelo de alimentação e de sociedade. O alimento virou um produto químico, pensado para lucrar, não para nutrir. O sanitarista Carlos A. Monteiro, da Universidade de São Paulo (USP), batizou essa ordem atualizada de “Nova Configuração do Sistema Alimentar” onde o ultraprocessado reina absoluto, e as formas tradicionais de comer são apagadas.
Monteiro alerta: é a “nutricionalização da fome”, onde se oferece comida sem nutrientes, calorias sem vida, embalagens sem cultura.
Hoje, a indústria dos ultraprocessados não só se consolidou: ela se tornou onipresente, quase como um vírus silencioso que infecta a cultura alimentar de todos os continentes. Com a mesma habilidade de uma teia de aranha, as grandes corporações se expandiram globalmente, infiltrando-se em cada esquina, em cada mesa, em cada país que abre suas portas para o neoliberalismo alimentar.
Na prática, não vendem apenas produtos embalados, mas um pacote completo: status, praticidade e ilusões de felicidade prontas para consumo imediato. Enquanto isso, o Brasil, um gigante em heterogeneidade alimentar, se ajoelha perante essas multinacionais, aceitando rótulos importados e renunciando ao que o torna único. Como um rio que troca suas águas limpas por poluição, trocamos os quintais e panelas por prateleiras e rótulos, deixando nossa saúde e soberania alimentar escorrerem pelos dedos como areia fina.
O que perdemos?
Perdemos o vínculo com a terra, a biodiversidade de nossos pratos, a soberania sobre o que comemos. Perdemos o prazer de cozinhar, de partilhar e de celebrar a comida como cultura e identidade. Em troca, ganhamos obesidade e doenças metabólicas, quando tudo já foi decidido pelas prateleiras e pelo feitiço dos influenciadores digitais sob a ilusão de liberdade de escolha dentro de um mercado desenhado para seduzir, capturar e zumbificar.
E agora?
Essa história é mais do que passado. É presente. E pode ser futuro, se nada mudar. Para combater o avanço silencioso dos ultraprocessados em nossas vidas, é preciso mais do que informação. Como canta Milton Nascimento: “irmão, é preciso coragem…” e pequenos gestos diários de reconquista. Volte a cozinhar, mesmo que seja um prato simples. Ao cortar um legume fresco ou preparar um feijão de panela, você retoma não só o sabor, mas a autonomia que a indústria quer roubar. Priorize feiras livres, pequenos produtores e produtos minimamente processados; neles está o futuro que nos foi prometido e o passado que nos fortaleceu.
Lembre-se: cada refeição é um ato político e poético. Ao escolher comida de verdade, você celebra a memória dos seus antepassados e planta esperança para as próximas gerações. Liberte-se das embalagens e recupere o prazer de mastigar, saborear e se conectar com o alimento como cultura viva. Esse é o caminho mais elegante e revolucionário para resgatar o controle sobre sua saúde, sobre a mesa da sua família e sobre a história que juntos ainda podemos escrever.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.