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Saúde e nutrição com Clayton Camargos: corpos de Ozempic

O nutricionista faz uma reflexão sobre o uso de ozempic e a busca pelo corpo perfeito
Foto: Freepik

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O Ozempic, fabricado pela dinamarquesa Novo Nordisk, faz parte de uma classe de drogas em expansão chamadas agonistas do receptor GLP-1, que alteraram dramaticamente as expectativas sobre diabetes e obesidade. Trata-se de um medicamento aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a ANVISA, apenas para o tratamento de diabetes tipo 2 – uma condição que é responsável por 90% de todos os casos de diabetes – e está disponível em nosso país desde 2018. Seu nome agora é uma abreviação para toda a categoria de injeções endereçadas ao emagrecimento, as chamadas “canetas emagrecedoras”.

Soma-se ao cenário o Mounjaro, a tirzapatida, um medicamento semelhante mais recente, fabricado pela Eli Lilly & Co., que está produzindo resultados ainda mais impactantes nos estudos clínicos.

Em 2023, a Novo Nordisk recebeu aprovação da agência brasileira para comercialização do Wegovy, que tem o mesmo princípio ativo do Ozempic, mas vem com dose máxima maior, e chancelado como medicamento antiobesidade. O Mounjaro foi igualmente autorizado. Embora aprovados, tanto a nova versão da semaglutida como também a tirzapatida, ainda não conseguiram alcançar o consumidor nacional por conta da insuficiência de dispositivos usados para injetá-los, que as farmacêuticas não conseguiram fabricar com rapidez suficiente para atender à alta demanda em todo o planeta. Numa teleconferência de resultados de final de ano em 2022, a Novo Nordisk citou um crescimento do mercado mundial de 50%, com quase 40.000 novas prescrições de Wegovy sendo emitidas todas as semanas.

É possível imaginar um universo diferente em que a descoberta da semaglutida fosse um bem puro, isto é, uma ferramenta poderosa para desembaraçar o nó das tendências genéticas, das forças ambientais e dos comportamentos que conspiram para fazer com que cada vez mais brasileiros engordem. Poderíamos reconhecer o metabolismo e o apetite como fatos biológicos e não como escolhas morais; as taxas crescentes de diabetes tipo 2 e obesidade em todo o mundo poderiam ser revertidas. Na vida real, as pessoas que mais precisam de semaglutida muitas vezes lutam para obtê-la, e a sua chegada parece ter suscitado menos uma consideração pública sobre o que significa ser gordo do que uma fixação renovada em ser magro.

A Revolução Industrial produziu estilos de vida cada vez mais sedentários e acesso mais fácil aos alimentos, para não mencionar tamanhos de vestuário padronizados. A indústria da dieta ganhou vida: o extrato de tireoide foi embalado em comprimidos e comercializado; havia “salões de emagrecimento” onde as mulheres podiam ter o corpo enrolado e espremido por máquinas. As revistas femininas consagraram a ideia de que a brancura da alta sociedade poderia ser expressa por meio de um corpo magro e articularam um horror à gordura e às culturas que a valorizavam. As pessoas têm lutado contra o estigma da obesidade desde pelo menos a década de 1960. De outra parte, a magreza por qualquer meio necessário, continua a ser um princípio quase fundamental de socialização contemporânea. Na década de 1990, sites pró-anorexia proliferaram na Internet; no início dos anos 2000, adolescentes vomitavam, faziam abdominais obsessivos ou tomavam Xenadrine em busca de um corpo como o da Britney Spears.

O corpo feminino ideal da última década, nascido da aliança ímpia do Instagram com a família Kardashian, era tão suculento e estranho quanto um pêssego injetado com silicone. Mulheres jovens em toda a Internet copiaram o formato: uma cintura esculpida, uma bunda enorme, quadris que se espalham generosamente por baixo de um biquíni de corte alto, e também uma boca grande e carnuda em cima dele, um híbrido de contornos de manequim reconhecidamente humano com uma sensualidade felina. Este protótipo foi tão mediado tecnologicamente quanto a época que o produziu; as mulheres conseguiram esse visual injetando substâncias artificiais, removendo as naturais e alterando evidências fotográficas.

Recentemente, percebeu-se que os cata-ventos humanos dos padrões de beleza das redes sociais estavam girando em uma nova direção: as Kardashians diminuíram de tamanho. Tendo anteriormente se apropriado de estilos criados por mulheres negras, elas agora estavam se inclinando para um ideal mais magro e branco. Kim emagreceu 10 kg; Khloé, que já falou sobre sua luta contra o peso, postou fotos de seu quadragésimo aniversário nas quais ela parecia tão magra e loira quanto uma Barbie. Em todo o Instagram, os ricos e influentes exibiam clavículas e caixas torácicas recém-proeminentes. A especulação: as Kardashians, e outros, provavelmente estavam tomando Ozempic. A aparência mais uma vez percebida como um objeto de desejo totalmente passível de manipulação tecnológica, agora um corpo de Ozempic.

Já comentei sobre essa pauta em outra ocasião, mas vale reprisar: um estudo de Harvard, baseado em dados do Teste de Associação Implícita, que pede às pessoas que classifiquem palavras e imagens em categorias “boas” e “ruins”, descobriu que o preconceito implícito contra portadores de excesso ponderal na verdade cresceu de 2007 a 2016, com 81% dos indivíduos exibindo-os na pesquisa. Todos os outros preconceitos implícitos no estudo – relativos a raça, gênero, orientação sexual, idade e limitações físicas – diminuíram durante esse período. Clique aqui para acessar o estudo.

O medo cultural da obesidade desempenha um papel nos resultados negativos a ela associados. Os médicos e nutricionistas, cerca de 1/3 dos quais, num estudo, relataram ver os seus pacientes portadores de excesso ponderal como “desleixados” e “preguiçosos”; frequentemente diagnosticam mal, subtratam ou envergonham pessoas gordas, que depois acumulam razões para desconfiar dos seus cuidados. Há pouco tempo uma colega nutricionista se virou para mim e comentou: “sabe, eu admiro a Jojô Todinho, mas é uma pena que todo esse movimento de positividade corporal tenha feito tantas pessoas pensarem que não há problema em ser obeso.”

Na edição em curso do Big Brother Brasil, parte do elenco masculino desferiu críticas desproporcionais à aparência da modelo Yasmin Brunet, alegando que, aos 35 anos, apresenta um corpo desleixado e sobrepesado, incapaz de sustentar os contornos que a tornaram bela na juventude. Ao mesmo tempo, exibiram um voyeurismo patológico ao tentar espiá-la em seu banho. A violência de seus comportamentos resumiu-se em um único compacto: a juventude imiscuída à beleza como fantasias eróticas sob o imperativo da latinidade patriarcal. Como bem dito pela escritora e filósofa existencialista francesa, Simone de Beauvoir: “o machismo faz com que o mais medíocre dos homens se sinta um semideus diante de uma mulher”.

O principal comentarista sobre os “defeitos físicos” da modelo, o cantor Rodriguinho, em uma oportunidade que estavam conversando, criticou o comportamento alimentar de Yasmin e profetizou que, se ela continuasse o consumo voraz de biscoito creme-craque com requeijão, sairia “rolando no chão” em razão do excesso de peso que, segundo o artista, possuiu visivelmente seu corpo. Inclusive, a apelidou de “Yasmin Comer”. Não se dando por vencido, em tom de chacota, sugeriu uma mordaça para conter a compulsão alimentar da influenciadora digital.

A obesidade está correlacionada com a pobreza, e os adultos negros e latinos têm maior probabilidade de serem gordos do que os brancos; a atitude geral em relação aos portadores de obesidade permite que uma aversão aos pobres e aos não-brancos seja expressa como preocupação moral. A crença de que a gordura em si não é feia nem alarmante é por vezes mal interpretada, ingenuamente ou não, como um completo desrespeito pela ligação entre saúde e ganho de peso.

Um corpo saudável geralmente pode sinalizar ao cérebro quando já comeu o suficiente. Mas esse sistema de sinalização pode estar com defeito: uma das coisas mais importantes sobre a obesidade, e algo que a maioria das pessoas não entende, é que, no processo de aumento ponderal, o circuito neural do cérebro que regula o peso é danificado. O hipotálamo mostra sinais de inflamação e lesão. A teoria predominante é que muitas calorias entrando muito rapidamente danificam os nervos que respondem aos hormônios que controlam o peso corporal.

Um desses hormônios é a leptina, produzida na gordura corporal e que sinaliza ao cérebro que é hora de parar de comer. Mas, se você aumentar gordura, o excesso de leptina pode fazer com que seu corpo fique insensível a ela, fazendo com que o cérebro acredite erroneamente que você está morrendo de fome. Isto é, o corpo tenta reequilibrar o sistema desacelerando o metabolismo e aumentando o apetite. Depois que uma pessoa ganha peso suficiente para entrar neste ciclo de desorientação metabólica, torna-se quase impossível emagrecê-lo e mantê-lo a longo prazo simplesmente por meio de dieta e exercício físico. Cerca de 5% das pessoas conseguem fazer isso.

A Eli Lilly e a Novo Nordisk, as duas farmacêuticas juntas que dominam o mercado de “canetas emagrecedoras”, têm pelo menos mais doze medicamentos para obesidade em desenvolvimento. A Novo Nordisk supostamente gastou mais de 100 milhões de dólares anunciando o Ozempic no ano passado, e as duas empresas estão investindo cerca de 10 milhões de dólares anualmente em lobby.

Em 2023, um relatório produzido pela Morgan Stanley previu que os lucros estadunidenses a partir desses medicamentos aumentarão 400 vezes até ao final da década em curso. A obesidade parece preparada para se tornar a próxima categoria farmacêutica de grande sucesso, e as redes sociais e o boca-a-boca criarão um “ciclo virtuoso exponencial” em torno das novas drogas: 1/4 dos portadores de obesidade procurará tratamento, acima dos atuais 7%, e mais de metade dos que o fazem começarão a tomar medicamentos.

Até que ponto o entusiasmo em torno desse novo arsenal terapêutico considerava o status quo mais ou menos garantido? Muitos problemas de saúde relacionados com a obesidade são agravados por circunstâncias que poderiam ser assistidas por intermédio de políticas públicas; aumentando o salário mínimo o suficiente para que as pessoas possam comprar alimentos frescos e de alta qualidade, investindo em habitação e espaços comunitários que sejam propícios à recreação, encerrando os bilhões de dólares em subsídios agrícolas destinados aos aditivos para alimentos ultraprocessados. Pois bem, essas ações funcionariam para prevenir a obesidade, não para debelá-la. Seria como tentar tratar o câncer de pulmão exclusivamente por um programa de cessação de tabagismo. Temos uma resposta individual, mas precisamos também de soluções coletivas.

Esses medicamentos foram desenvolvidos para doenças crônicas: obesidade e diabetes. Para pessoas que lidam com essas condições, o Ozempic parece criar um caminho para uma relação saudável com a comida. Para aqueles que não o são, pode funcionar mais como um transtorno alimentar injetável. Como os efeitos colaterais deixam claro, não é algo casual alterar radicalmente o processo metabólico do seu corpo, e não há dados robustos sobre a segurança desses fármacos quando tomados por pessoas que estão principalmente interessadas em tratar outra condição crônica, o desejo de ser magro.

Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta em uma coluna futura.

*Clayton Camargos é sanitarista pós graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.