Por séculos, o estômago brasileiro roncou no silêncio das cozinhas vazias. Hoje, o eco mudou de tom: não é mais o som da miséria, mas o peso da abundância que ressoa nos corpos. Essa semana, o País deixou pela segunda vez o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/OMS).
A prevalência de subnutrição caiu abaixo de 2,5% da população, aproximadamente 24,4 milhões de pessoas, conforme critérios rigorosos do relatório State of Food Security and Nutrition in the World (SOFI) 2025. Um encolhimento de 85% desde 2022.
O triunfo do “Plano Brasil Sem Fome”, com mais de 80 ações interministeriais, aliado à expansão do Bolsa Família, da merenda escolar e dos bancos de alimentos e cozinhas solidárias orquestrou essa conquista histórica.
Entretanto, a insegurança alimentar e nutricional persiste entre os grupos mais vulneráveis: povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros tradicionais, pequenos agricultores e trabalhadores rurais, populações urbanas pobres e em situação de rua, além de mulheres, pessoas negras e LGBTQIAPN+, que enfrentam desigualdades estruturais e discriminação.
Especialistas da Unicamp apontam que muitos desses brasileiros, mesmo quando conseguem escapar da fome, acabam presos a um cardápio de ultraprocessados baratos, pobres em nutrientes e fartos em calorias, alimentando silenciosamente a epidemia de obesidade.
Estudos recentes revelam que, embora 76% dos brasileiros reconheçam a obesidade como doença, a maioria ainda a enxerga como um desafio solucionável apenas com força de vontade, isto é, dieta e exercício físico. Persistimos, assim, em um olhar que mistura moral e estética, onde o corpo gordo é julgado antes de ser compreendido.
No plano global, a tragédia se agiganta: um relatório divulgado na revista The Lancet divulgado em março de 2025 alerta que mais da metade dos adultos e um terço dos jovens portarão obesidade ou estarão acima do peso até 2050.
No Brasil, esse retrato em preto e branco e sem retoques se intensifica: até 2030 sete em cada dez brasileiros portarão excesso ponderal. E quase um em cada dez diagnosticados com obesidade mais grave.
Paralelamente, floresce uma indústria trilionária do bem-estar. Segundo o Global Wellness Institute, o mercado global do “wellness” movimentou US$ 6,3 trilhões em 2023, e deverá crescer a 7,3% ao ano até 2028, alcançando talvez US$ 9 trilhões: maior que os setores verde, de tecnologia e de esportes.
Na medicina há avanços significativos: a consagração de terapias à base de agonistas do receptor GLP-1, como a semaglutida e tirzepatida (Ozempic, Wegovy, Mounjaro), transformam a obesidade em uma condição tratável e não moralmente condenada.
A expectativa é que genéricos estejam disponíveis no nosso País a partir de 2026; a Novo Nordisk expandirá sua produção local até 2028. Contudo, se tais tratamentos permanecem inacessíveis à maioria, aprofundam uma nova forma de estigma: a desigualdade no acesso pode escalar preconceitos contra quem não pode pagar essas terapias.
Nesse contexto, em terras nacionais, segundo o IMARC Group, o mercado de saúde e bem-estar chegou a US$ 82,3 bilhões em 2024, com projeção de crescimento anual de 10,94% até 2033, alcançando US$ 209,5 bilhões.
O brasileiro investe e custeia com potência a indústria da beleza e do bem-estar. Mas sem considerar a pluralidade de seus regionalismos culturais, e sim para encontrar um “padrão de beleza” regulado pela métrica do hemisfério norte.
No início do século passado, Oswald de Andrade cunhou “Beleza de Vitrine” para criticar a estética eurocêntrica que o Brasil adotou ao negar sua ancestralidade africana, indígena e mestiça, impondo corpos caucasianos como modelo e marginalizando o corpo plural e solar brasileiro.
O poeta repele à plástica forasteira: “fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingimos ser Pedro Álvares Cabral para poder brincar no Carnaval dos reis de palco. […] Contra todas as importações de beleza exterior, de Beleza de Vitrine.”
No Manifesto Antropofágico (1928), ele defende uma beleza que devora o mundo e o devolve tropical, livre de importações estéticas.
Norbert Elias, ao analisar o processo civilizacional, destaca como o corpo se tornou território de normas sociais e autocontrole. Zygmunt Bauman, em sua modernidade líquida, revela a fragilidade dessa construção, sempre vulnerável à pressão estética e ao consumo.
Desde o Iluminismo, o corpo magro foi esculpido como símbolo de disciplina, moralidade e valor econômico.
A obesidade do nosso século escancara a engrenagem que a sustenta. E se alimenta da desigualdade econômica, da extravagância publicitária dos ultraprocessados e da multiplicação colossal de ambientes obesogênicos.
Sim, derrubamos o espantalho da fome severa, mas permanecemos atolados no mapa da obesidade! Este paradoxo denuncia uma transição nutricional marcada por comida industrializada, sedentarismo e pressão estética. A ética social que um dia protegeu o corpo parece ter sido invertida em um tribunal de punição visual.
O convite é claro: promover uma reconexão social e nutricional, com soberania alimentar, políticas compassivas e educação que acolha a dualidade de viver entre fome e obesidade. Sairmos do deserto da fome foi apenas o prólogo. A liberdade, de fato, exige enfrentar a montanha-russa da falta e do excesso que nos adoecem.
Alimentação saudável é força e proteção. Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.