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Saúde e nutrição com Clayton Camargos: a treta da creatina

A creatina virou religião no feed de muita gente, e como toda fé cega, há também seus hereges

Se você está nas redes sociais, pode ter se deparado com um episódio recente no mundo fitness tupiniquim envolvendo os influenciadores Mariana Krüger, bióloga, Igor Eckert e Rodrigo Góes, ambos colegas nutricionistas, sobre a prescrição de creatina.

O que parecia mais uma dessas polêmicas efêmeras de internet logo se transformou em batalha ideológica: de um lado, o entusiasmo quase messiânico em torno do suplemento; de outro, vozes dissonantes exigindo cautela, ciência e contexto.

Mariana Krüger, sempre crítica ao marketing predatório, reforçou a necessidade de refletir sobre o uso da substância, lembrando que muitos profissionais desse setor vendem ficções em embalagens coloridas e divertidas. E que as “gominhas” de creatina são uma patuscada.

“Todo mundo deveria tomar creatina!” Com essa exclamação lapidar, lançada como granada no Instagram, Rodrigo não só dividiu opiniões, como acendeu o pavio de um debate explosivo; e converteu-se em meme e brasão da creatina como panaceia.

Igor Eckert publicou um vídeo reagindo às publicações de Krüger e Góes e afirmou que a creatina, embora eficaz, não é um X-Tudo e tampouco deve ser usada indiscriminadamente.

Mas, afinal, quem está com a razão? A resposta àquilo que envolve saúde não cabe em um post.

Produzida naturalmente no fígado, rins e pâncreas, a creatina é um composto orgânico fundamental para a produção de energia celular, principalmente em músculos e no cérebro.

Desde a década de 1990, ela vem sendo estudada exaustivamente, com evidências acumuladas sobre seu papel no desempenho atlético, na composição corporal e, mais recentemente, nas funções cognitivas. A ciência, hoje, não deixa dúvidas: sim, a creatina funciona, mas isso não significa que todos devam usá-la.

Uma meta-análise publicada em 2024 no Journal of Clinical Medicine mostrou que a suplementação com creatina monohidratada melhora significativamente a força muscular e o desempenho em exercícios de alta intensidade, com ganhos médios de até 11 kg na força dos membros inferiores após 8 a 12 semanas de uso.

Outro estudo, publicado na Frontiers in Nutrition, analisou mais de 680 ensaios clínicos e concluiu que a creatina é segura mesmo em doses elevadas (até 30g/dia) e por longos períodos (acima de 5 anos), inclusive em populações especiais como idosos e adolescentes. Menos de 0,001% dos efeitos adversos relatados puderam ser associados diretamente à creatina, reforçando sua garantia.

No entanto, os dados mais recentes talvez surpreendam quem associa creatina apenas ao universo das academias. Uma investigação conduzida por neurocientistas da Universidade de Sidney, publicada em maio de 2024, mostrou que a creatina pode melhorar significativamente a memória de trabalho e a velocidade de raciocínio, especialmente em adultos privados de sono. 

Essa publicação, conduzida por Chen Xu e colaboradores, avaliou 16 estudos clínicos randomizados (489 participantes, 20–76 anos), seguindo rigorosos critérios PRISMA/PROSPERO.

  • Principais resultados:
    • Melhora significativa na memória (SMD ≈ 0,31; intervalo de confiança [IC] 0,18–0,44);
    • Redução do tempo de atenção (SMD ≈ –0,31; IC –0,58 a –0,03);
    • Aceleração do tempo de processamento da informação (SMD ≈ –0,51; IC –1,01 a –0,01);
    • Sem alteração significativa em função executiva e cognição global.
  • Qualidade da evidência:
    • Avaliação GRADE indicou certeza moderada para memória, e baixa para os demais domínios;
    • Didática e transparente na metodologia, com baixa/moderada heterogeneidade (I² variável entre 18% e 75%).
  • Confiabilidade:
    • Publicação peer‑review atualizada em julho de 2024, com corrigenda em fevereiro de 2025;
    • Base de dados ampla (PubMed, Scopus, Web of Science), estudos randomizados controlados considerados padrão ouro.

A suplementação elevou a performance cognitiva em até 15% em testes padronizados. É como se a creatina agisse como um fôlego interno” quando o cérebro já pediu arrego.

Essa revisão sistemática confirma que a creatina exerce impacto cognitivo positivo, sobretudo em:

  • Memória de curto prazo;
  • Atenção, especialmente redução do tempo necessário;
  • Velocidade de processamento mental.

Os efeitos são estatisticamente significativos, têm fundamentação sólida e são provenientes de estudos de alta qualidade. No entanto, as evidências ainda são modestas e situacionais, com maior repercussão em perfis como:

  • pacientes com privação de sono;
  • indivíduos com estresse cognitivo;
  • populações específicas (por exemplo, veganos);
  • portadores de restrições neurológicas leves.

Em suma, há provas científicas crescentes, consistentes e vestibulares de instituições de alta credibilidade indicando que a creatina possui benefícios cognitivos, especialmente em contextos específicos. De toda sorte, não se observa um efeito generalizável em adultos saudáveis, bem nutridos, descansados e sem déficit cognitivo.

Portanto, ainda não há consenso absoluto para que essas repercussões sejam incorporadas universalmente como diretriz formal em condutas clínico-nutricionais, mas sim como uma possibilidade fundamentada e prudente, a depender do perfil do paciente.

No Brasil, a ANVISA ainda classifica a creatina como suplemento destinado a atletas, embora a tendência regulatória esteja mudando.

Aqui no país, o consumo de creatina ainda está em expansão, mas já revela sinais promissores. De acordo com levantamento da Grand View Research, o mercado brasileiro movimentou cerca de US$ 25,3 milhões em 2023 com suplementos à base de creatina, e projeta-se que esse valor ultrapasse US$ 76 milhões até 2030, acompanhando o crescimento global da categoria. Embora ainda distante dos gigantes como Estados Unidos, China e Alemanha, o Brasil desponta como um dos mercados mais dinâmicos da América Latina.

Em abril último, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) divulgou uma análise laboratorial de 41 suplementos de creatina disponíveis no país, produzidos por 29 fabricantes nacionais. O resultado foi amplamente positivo: 40 produtos apresentaram teor adequado do composto dentro do limite regulamentar, com apenas uma amostra fora do padrão.

De outra parte, quase todos os produtos avaliados apresentaram algum tipo de erro de rotulagem: desde alegações não permitidas até tabelas nutricionais incompletas ou instruções ausentes. Apesar das falhas formais, não foram detectadas contaminações ou riscos à saúde, o que confirma a segurança sanitária da creatina nacional.

A ANVISA notificou os responsáveis, mas descartou necessidade de recolhimento, sinalizando um mercado em amadurecimento, que combina alta pureza com desafios ainda persistentes na comunicação com o consumidor.

O que se vê, porém, vai além da ciência e do consumo. O mercado de suplementos, especialmente o da creatina, opera em um vácuo regulatório ainda permissivo, sob influência direta de grandes marcas que transformam compostos bioquímicos em promessas marqueteiras.

A publicidade do “vacarejo” muitas vezes disfarçada de conteúdo informativo avança mais rápido do que a capacidade de regulação estatal. Falo aqui, também, sobre a invisibilidade de campanhas de orientação nutricional a partir do Ministério da Saúde.

A carência da presença pública que alerte à respeito do uso consciente de suplementos nutricionais franqueia o patrocínio em páginas de influenciadores. Muitas empresas operam nos limites (ou nas brechas) da lei, e transformam alimento em mercadoria aspiracional.

É um cenário que revela não apenas um corpo que consome, mas uma política que se omite. O corpo do consumidor, hiperestimulado, segue em marcha acelerada, enquanto a musculatura institucional da regulação pública ainda não saiu do aquecimento.

A medicalização da vida cotidiana se banaliza hipertrofiada à delegação do cuidado ao mercado: dorme-se mal, come-se pior, e prescreve-se creatina como se fosse salvação liofilizada. Consideremos uma elite informada e conectada, enquanto milhões ainda enfrentam uma dupla carga de má nutrição paripassu à insegurança alimentar e à obesidade.

A fronteira entre ciência e comércio tornou-se porosa, com prescrições orientadas mais pelo algoritmo do engajamento do que pela avaliação clínica. Nomear esses conflitos de interesses é essencial não apenas para restituir a autonomia do sujeito diante de seu corpo, mas também para expor a captura simbólica do cuidado por interesses privados. 

Entenda: nem todo humano precisa de mais creatina. Em indivíduos com alta ingestão de carnes e peixes, fontes naturais do composto, e sem demanda atlética ou cognitiva específica, a suplementação pode gerar pouco ou nenhum benefício. Além disso, restrições clínicas como insuficiência renal ou uso de certos medicamentos exigem avaliação cuidadosa.

Portanto, a pergunta que realmente importa não é: todo mundo deve tomar creatina?” Aposta de Rodrigo Góes. A pergunta certa é: para que você precisa dela?”

A creatina pode ser, sim, uma poderosa aliada. Mas só brilha quando inserida na partitura certa. Imagine seu corpo como um grande piano de cauda. A creatina não toca por você. Ela apenas afina as cordas. Se você não tiver repertório, disciplina e ritmo, ela será apenas mais uma tecla pressionada à toa.

Por isso, a melhor posição, nesse debate que misturou ciência, vaidade e performance midiática, é justamente aquela que defende o equilíbrio: a de Igor Eckert, que sustenta que o uso deve ser personalizado e orientado por profissionais do setor da saúde, e a de Mariana Krüger, que denuncia o delírio de transformar suplementos em amuletos. Há muito de verdade nas duas falas. 

Creatina não é milagre. Mas, quando prescrita com critério, pode ser uma faísca potente na engrenagem do organismo humano. Como toda boa escolha em saúde, ela deve partir de você, entretanto, sustentada por conhecimento, e não likes. Isto é: se a creatina é uma faísca, sua prescrição embasada pela ciência é uma tocha que clareia sem queimar.

Consultar um especialista pode parecer lugar comum. Mas, veja bem: talvez a creatina seja o que falta. Ou talvez você precise mesmo é de mais sono, mais água, mais corpo em movimento, mais feijão com arroz, farofa, bife acebolado, ovo frito, alface com tomate e menos feed da Maíra Cardi.

No final das contas, quem vende fantasias não quer que você descubra que a resposta estava no seu prato ou na sua cama. 

Alimentação saudável é força e proteção. Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.

 

*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.

CRN-1 2970.

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