Vivemos a era da estética estafada — não como metáfora, mas como diagnóstico. Uma época em que o rosto harmonizado (?), os lábios delineados e a epiderme luminosa tornaram-se dever cívico.
O autocuidado, outrora expressão de afeto consigo, transfigurou-se em liturgia diária de controle, performance e mercado. E, como bem registrou Michel Foucault em Microfísica do Poder (1979), o corpo tornou-se superfície de inscrição política — onde o poder se escreve com bisturis, ácidos e algoritmos.
A beleza, hoje, é menos dom e mais tarefa. Uma rotina minuciosa que exige o vigor de uma devoção religiosa. Massagens faciais com microcorrentes elétricas, tatuagens cosméticas, cílios permanentemente arqueados — tudo para simular uma naturalidade inexistente, como se o próprio artifício precisasse parecer espontâneo.
Como nos lembra Jean Baudrillard em A Sociedade de Consumo (1970), não consumimos mais o que é útil, mas o que significa: não compramos cremes, mas juventude; não buscamos saúde, mas pertencimento estético.
Esse culto não conhece limites etários. Pré-adolescentes já se iniciam em protocolos antiidade — um paradoxo que beira a distopia. Avós, por sua vez, encarnam a juventude idealizada, glamourizada e eternamente reproduzida num passado sem perspectivas de futuro. Segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética, entre 2019 e 2023, os procedimentos não cirúrgicos cresceram 58%. Um dado que não revela apenas demanda, mas também angústia.
Zonas outrora poupadas da obsessão corretiva agora se tornam alvos: costas, orelhas, gengivas, até os dentes ganham gloss. A ilusão da completude é tamanha que parece não haver mais corpo, apenas projeto. E como nos ensinou Pierre Bourdieu em O Poder Simbólico (1989), o corpo belo é o capital de uma elite simbólica — um passaporte silencioso que escancara portas e oculta desigualdades.
A literatura e o cinema, como oráculos da sensibilidade social, já intuem essa exaustão. Em Aesthetica (2022), Allie Rowbottom imagina um procedimento capaz de apagar os rastros de toda intervenção estética prévia — como se o passado estético fosse, em si, um trauma a ser desfeito. Já em The Substance (2024), Demi Moore protagoniza uma paralelo invertido onde a busca pela beleza se torna um horror de carne e obsessão. São obras que não apenas denunciam, mas desnudam.
Esse colapso silencioso já tem nome: Great Exhaustion. O termo, cunhado pela consultoria WGSN, prevê para 2026 um colapso coletivo gerado pela sobreposição de crises — ambientais, políticas, bélicas, tecnológicas e existenciais. Mas é possível que esse burnout já tenha se instalado. A beleza, quando não respira, adoece.
Entretanto, mesmo diante da inflação, dos alertas e da fadiga generalizada, o fascínio estético resiste. Produtos premium de beleza aumentaram 9% seu valor no último ano. A indústria, com sua maquinaria simbólica precisa, parece imune ao cansaço que ela mesma produz. Como disse Zygmunt Bauman em Vida para Consumo (2007), o sujeito moderno não se define pelo que é, mas pelo que consome — e consumir beleza é, hoje, condição de existência pública.
A beleza se tornou imperativo moral. E como bem escreveu Umberto Eco em História da Feiura (2007), “a beleza é sempre excepcional, e toda exceção, por definição, cansa.” Talvez por isso estejamos cansados — não da beleza, mas da obrigação de habitá-la.
Em um mundo onde a face se tornou o novo campo de batalha simbólica, onde a epiderme é o último território a ser conquistado pela promessa de imortalidade, resta-nos uma pergunta inquietante: estamos cuidando de nós — ou nos sabotando em nome de um ideal inalcançável?
Na fluidez das aparências, como apontou Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo (1967), resta pouco espaço para o real. Mas é nesse resquício que pode nascer a verdadeira rebelião: aquela que escolhe o descanso em vez da correção, o silêncio em vez da selfie, o cuidado como pausa — não como penitência.
Como já sussurra, com ironia amarga, o velho ditado: “para ser belo é preciso sofrer.” Mas, em tempos de hiperconsumo e vigilância estética, essa dor deixou de ser exceção para tornar-se método.
Sofre-se com agulhas e suplementos nutricionais, com restrições alimentares e expectativas alheias — uma dor que não é apenas sensorial, mas simbólica, estrutural, profundamente recalcada na cultura que transforma o corpo em trincheira e o rosto em manifesto. Num mundo tão volátil quanto vaidoso, controlar a própria aparência tornou-se um simulacro de poder, um gesto de resistência domesticada — onde até a rebeldia vem com bula e branding.
Eis, portanto, o paradoxo do nosso tempo: às portas de um “beauty burn-out” — esse colapso silencioso da estética performada — urge uma pergunta que incomoda como a lâmina de um bisturi: estamos nos cuidando ou nos sabotando com verniz de autocuidado?
Em meio à impermanência líquida que dilui até as identidades, é preciso refinar o olhar e resgatar o óbvio que esquecemos: saúde, beleza e nutrição não nascem do excesso nem da simulação, mas do equilíbrio — essa rara e revolucionária arte de não se render ao exagero disfarçado de naturalidade. Quando o mundo parece instável, incontrolável, as pessoas tentam controlar o que podem: seus rostos e corpos.
Como nos adverte Gilles Lipovetsky em O Império do Efêmero (1987), a beleza moderna deixou de ser um privilégio estático para tornar-se um imperativo frenético — um luxo democratizado, porém esvaziado de permanência. Hoje, sofre-se não apenas para ser belo, mas para continuar sendo. A dor — estética, financeira ou emocional — converteu-se na cifra simbólica do pertencimento: depila-se, preenche-se, esculpe-se, como se o corpo fosse uma tela em eterno preview.
Num mundo em que a leveza virou fetiche e o rejuvenescimento uma obrigação moral, controlar o corpo e o rosto tornou-se não um ato de resistência, mas de conformidade embalada em seda javanesa.
Em A Estetização do Mundo (2015), Lipovetsky revela que vivemos sob o reinado do design total, onde tudo — do prato à epiderme — deve seduzir. Mas a saúde, a verdadeira, não se rende a essa coreografia do supérfluo. A beleza autêntica não grita: ela sustém. E a nutrição — de dentro e de fora — exige mais que promessas em frascos reluzentes. Exige discernimento. Porque, em tempos de estética industrializada, recordar o valor do equilíbrio é mais do que bom senso — é luxo silencioso e ato de rara sofisticação.
Porque, no fim, como alertou Guy Debord, “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.
Em tempos líquidos, como descreve Bauman, em que nada é feito para durar — nem os vínculos, nem os rostos — o corpo torna-se mercadoria simbólica, sujeita ao descarte.
Foucault já havia nos advertido que o poder contemporâneo não impõe com violência, mas regula, normaliza, prescreve condutas — molda os corpos, enquanto os faz acreditar que estão se moldando por escolha própria.
E Umberto Eco, ao percorrer as metamorfoses da beleza e da feiura ao longo da história, nos recorda que nenhum padrão é neutro, tampouco eterno: todos são construções culturais que escondem, sob a estética, relações de poder. Talvez, portanto, o verdadeiro gesto de saúde — e de lucidez — seja resistir à normatização, romper com o espetáculo, recusar o efêmero como ideal e, enfim, reaprender a ser antes de parecer.
Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.