GPS Brasília comscore

Saltburn e a fadiga de perfeição: um adeus ao “clean look”

Sai Hailey Bieber, entra Venetia Catton: como o filme Saltburn de Emerald Fennell cimenta uma nova era de vestir
Foto: Reprodução

Compartilhe:

“É literalmente impossível ser uma mulher”. No breu da sala de cinema, America Ferrera não se intimidou pelo silêncio. “Nós temos que ser sempre extraordinárias, mas de algum modo estamos sempre errando”. Devastada e esgotada, a ‘Barbie Estereotípica’ de Margot Robbie tinha em seu rosto os cabelos bagunçados, grudados na bochecha corada de choro.

Diante delas, um oceano cor-de-rosa brilhava no escuro. De maquiagem bem feita, penteado alinhado e looks a caráter, cada um dos espectadores era uma fantasia desse símbolo ideal. A ‘boneca mais famosa do mundo’, impecável e incorrigível, uma insígnia do feminismo e do feminino. É, a Barbie tinha tudo que uma mulher poderia querer… e ainda assim, trocou tudo pela deliciosa desordem de ser ‘gente de verdade’.

Sem olhar para trás, se despediu de Barbieland. Preferiu as lágrimas e as celulites e as incômodas visitas ao ginecologista. O cabelo preso de jeito bagunçado. as confortáveis sandálias Birkenstock. Preferiu pensar na morte, na vida, em pisar numa praia feita de sal e areia — e foi aí que a tão bem feita maquiagem… borrou.

Barbie, de Greta Gerwig, foi sem dúvidas a bússola cultural de 2023. E como tudo que é grande, recebeu aplausos e vaias. O filme causou de um todo: controvérsia, discussão, xingamento… de ‘programa para a família toda’, foi recebido como cavalo de Tróia político. Mas no meio do barulho, parece que uma mensagem se perdeu. Então quer dizer que nem a boneca mais perfeita de todas é capaz de suportar o carácter exaustivo da perfeição?

Se em sua introdução a obra celebra a independência feminina, seu final reivindica a beleza do humano. O plástico é divertido, sim, mas a carne é real. O perfeito deu canseira — agora, temos fome pelo que é de verdade.

Cunhada pelas mentes dominantes das plataformas sociais, a “clean girl aesthetic” foi a menina dos olhos da moda durante um bom tempo. Pense em Hailey Bieber, Sofia Richie, penteados em gel dogmaticamente alinhados. Aulas de pilates pela manhã, suco verde e probióticos. Uma pele que é perfeita graças a uma rotina de nove passos de skincare, mas que dispensa maquiagem. Ela é a mulher que te atormenta com um sorriso de dentes brancos. O rímel dela não empola, a testa dela não franze, a unha dela não quebra. Observar essa garota é insuportável e inebriante, mas ser essa garota é um fatigante experimento fadado ao fracasso.

Com centenas de milhares de resultados de conteúdo na plataforma TikTok, a estética da ‘clean girl’ reforçava a ideia de um lifestyle idealizado (Foto: Reprodução/Theodora Zaccara)

Corta cena, troca cenário. É novembro do mesmo ano, e o cabalístico Saltburn de Emerald Fennell é todo o alvoroço dos festivais de cinema. Rodado dentro de um escandaloso castelo inglês nunca antes acessado pelo público, o longa-metragem brilha através de uma fotografia que mais parece pintura — algo das telas Bosch, Caravaggio, Ticiano, do estilo barroco ao gótico flamengo… verdadeiras férias para os olhos.

A sinopse, da mesma forma, também parece coisa de sonho: após fazer amizade com o jovem aristocrata Felix, o ‘Zé-Ninguém’ Oliver é convidado a passar o verão no castelo da família (sim). Um CEP, como é de se imaginar, nada menos que absolutamente inebriante: como se Shakespeare tivesse descrito o jardim do Éden.

Ambientada no verão de 2006 pelo countryside da Inglaterra, a obra contrasta os cenários faraônicos do palácio de Saltburn com a moda não-tão-polida, mas intuitivamente precisa, do final dos anos 2000. “O filme se passa apenas 15 anos no passado, mas tivemos que atacá-lo como uma obra de época”, explicou Emerald em entrevista à Vogue americana. No comando do figurino, Sophie Canale — que assina também a segunda temporada do sucesso Bridgerton — tinha nas mãos a incumbência de retratar um período não muito bem visto aos olhos da moda contemporânea, com o aditivo de capturar, ainda, o modo despreocupado e indiferente como só os podres de ricos tem o luxo de vestir. “Algo que é muito verdadeiro dentro do sistema de classe britânico é que quanto menos você se produz, mais dinheiro você tem”.

Eis que nasce Venetia: a nova obsessão da internet. Inspirada em Sienna Miller e Keira Knightley, a joia da família Catton é tudo que menos se espera de um membro da nobreza. Com cabelos descoloridos, unhas lascadas e raiz por fazer, a maçã cai longe da árvore de Kate Middleton ou Lady Di. Não, nada disso! Venetia é boêmia, borrada e bagunçada — e é por isso que todo mundo ama ela.

Rica, privilegiada e muito bem-criada, Venetia subverte o arquétipo da ‘herdeira educada’ e encabeça com maestria o estilo das it-girls de 2006. Com plataformas Miu Miu vintage e acessórios Topshop, ri na cara de quem acha que sweater da Ralph Lauren é o supra-sumo do ‘old money’, e que só Loro Piana se enquadra como ‘quiet luxury’. Não, Venetia não tem nada de ‘quiet’: ela tem um castelo inteiro só para ela — e ela não precisa, nem quer, fazer silêncio.

Em toda a sua conduta e charme, Venetia é o que chamam por aí de “messy girl”, um novo cânone feminino cunhado para retratar a ‘menina bagunçada’, que prefere o esmalte descascado à manicure emaculada, que escolhe o o descolorido ressecado em oposição ao moreno bem tratado.

Ela evoca toda uma era de baladeiras assumidas, de Lindsay Lohans e Paris Hiltons: de mulheres menos que perfeitas, coroadas no carisma e no caos.

Sem tempo para o capricho mas com horas de sobra para o glamour, a tendência abraça um espírito jovem, quase adolescente, de texturas que discordam, cores que brigam e silhuetas que priorizam a personalidade. Peças vintage, que carregam história, são preferíveis ao ‘blazer da moda’. A obsessão por limpeza e candura fica no passado, dando espaço para modas e filosofias que acolhem a imperfeição.

Utilizando de elementos-chave da moda de 2006, a equipe de design desenhou uma personagem simultaneamente real e aspiracional

E que revigorante ver a bálburdia dando ordem! Dar um descanso pro gel de cabelo, pular o ácido hialurônico sem culpa… Sim, acompanhar a escada rolante das tendências é um exercício enfadonho e infrutífero. Desce nesse andar! Sobe naquele! Seja clean, seja messy! Melhor nem tentar. Mas uma pitada de niilismo no vestir tem o poder de libertar.

De tirar um pouco os olhos do espelho — e enxergar o mundo. Focar em algo que vai além da própria pele, vivendo enquanto há vida para ser vivida, bebendo direto da boca da garrafa, trajando brilho e calçando festa. “Eu estou cansada de ver eu e todas as mulheres que conheço se amarrando em nós apenas para que as pessoas gostem da gente”. Que nos soltemos, America! E que os nós fiquem apenas nos cabelos.