Com a presença constante da tecnologia no cotidiano, educar filhos no mundo digital se tornou um dos principais desafios enfrentados pelos pais. Com crianças cada vez mais expostas a telas e conteúdos online desde cedo, surgem preocupações sobre os impactos no desenvolvimento emocional, social e cognitivo dos pequenos.
O psicanalista Adriel Pereira, que estuda o tema em sua dissertação de mestrado, alerta para os riscos da exposição precoce às telas. “Percebi o quanto o uso de telas pode atrapalhar o desenvolvimento da autorregulação nas crianças. E a informação rápida e ilimitada na ponta dos dedos acaba tornando difícil a filtragem de conteúdos inadequados”, observa.
Além disso, segundo Adriel, as plataformas digitais operam num ritmo acelerado e contribuem para o aumento da ansiedade entre os pais, criando uma pressão social. Uma espécie de ansiedade parental sobre oportunidades educacionais e o receio de estar ficando para trás, conhecido como FOMO (Fear of Missing Out).
Ele também destaca como a tecnologia pode invadir momentos íntimos do dia a dia. “A drenagem de atenção causada pelas demandas entre vida familiar, trabalho e dispositivos, e a separação entre o espaço público e o privado, com dispositivos invadindo momentos de intimidade, como jantares, refeições e a hora de dormir, acaba se tornando uma extensão do nosso ser”, comenta.
Do ponto de vista emocional, o uso da tecnologia pode preencher lacunas afetivas e as crianças podem tentar buscar online satisfação de necessidades afetivas não atendidas no setting familiar. Nesse cenário, a figura paterna se torna essencial: “A presença e o manejo do pai são cruciais para regular pulsões, oferecendo vínculos estáveis e limites consistentes para os seus filhos”.
E é importante ter atenção no tempo de qualidade em família, que é facilmente impactado pelas redes sociais. “Seguramente, o uso de telas tende a fragmentar a atenção e reduzir a qualidade do tempo compartilhado“, analisa.
No ambiente escolar, o excesso de estímulos digitais pode atrapalhar a concentração. “O excesso de estímulos pode levar à hiperestimulação. Isso acarreta por vezes a dificuldade de tolerar frustrações e resistência a tarefas prolongadas”,
Estratégias
Para evitar que isso aconteça, é preciso ter presença plena e investir em momentos memoráveis afetivamente com os filhos, como as brincadeiras e momentos de carinho. “Só é possível estabelecer um alto nível de qualidade do convívio através da presença plena, do contato olho no olho, dos rituais, das brincadeiras conjuntas e das conversas significativas”, explica.
Ele sugere estratégias simples, começando pelo fato de que o pai pode servir de modelo, mostrando que ele também pode reduzir o uso de telas na presença da família. “A criação de espaços livres de tela, como quartos sem dispositivos ou momentos de silêncio rápido para desacelerar o estímulo, especialmente antes de dormir, acaba também auxiliando na higiene do sono”, reforça.
Adriel recomenda organização e previsibilidade. “Algumas intervenções práticas podem incluir rotinas previsíveis de estudo com pausas (por exemplo, períodos de foco de 25–30 minutos seguidos de 5–10 minutos de descanso), limites bem definidos de tempo e conteúdo”, sugere o psicólogo.
Além disso, ferramentas como recompensas não digitais e ambiente livre de distrações também ajudam, como por exemplo a criação de uma ‘árvore de deveres’ com recompensas para incentivar a conclusão das tarefas e conversas que ajudam a nomear emoções.
Para evitar conflitos ao estabelecer limites, o psicanalista recomenda regras e participação da criança no processo. “É fundamental ter regras claras e previamente estabelecidas, envolvendo sempre a criança no processo de decisão de acordo com a idade”, indica e ainda explica que a flexibilidade e o bom senso fazem parte do processo, mas tudo depende da idade da criança. “Negociar exceções com responsabilidade pode permitir momentos especiais, como pesquisas para projetos escolares com supervisão”, diz.
Pai de dois, o administrador Alisson Ferreira conta que criar e manter limites é um desafio diário dentro de casa, mas ele não desiste.
“Sempre coloco regras, mas faço isso conversando, explicando que temos que viver o mundo real, e eles, no geral, entendem. Sempre tem aquelas ‘escapadinhas’, que às vezes não percebemos, mas tento criar alternativas que sejam atrativas para eles”.
No entanto, mais do evitar, os pais precisam estar cientes do que é consumido na intetnet pelos filhos e ajudar a gerir esse conteúdo de forma segura e saudável.
“Conhecer os conteúdos facilita a detecção de riscos como cyberbullying, grooming e conteúdos mais agressivos, além de criar uma base para diálogo aberto“, observa. Diálogo esse, inclusive, que fortalece o vínculo entre pais e filhos, permitindo conversas sobre interesses, críticas construtivas e validação emocional.
Como saber se meu filho está sendo prejudicado?
“Sinais básicos incluem alterações no sono (dificuldade para dormir, pesadelos, insônia), alterações de humor (irritabilidade, ansiedade, retraimento), dificuldade de atenção que se manifesta como queda no rendimento escolar”, alerta Adriel.
Outros sinais incluem dificuldades de convivência e saúde física. “Problemas de relacionamento (isolamento, conflitos com amigos ou familiares), comportamento compulsivo relacionado ao uso, alterações na alimentação (comer de forma irregular ou compulsiva) e manifestações somáticas como fadiga ou dores de cabeça frequentes”, explica.
Se esses sinais forem persistentes, a orientação é sempre recomendável buscar avaliação de um pediatra ou psicólogo para obter um diagnóstico mais detalhado e identificar a causa raiz do problema.
Sobre a idade ideal para começar a usar as tecnologias, Adriel propõe uma abordagem progressiva.
“Em linhas gerais, crianças até 5–6 anos devem ter uso mínimo ou até nulo. De 6–8 anos, interfaces simples com objetivos lúdicos. Entre 8–12, uso orientado com conteúdos que incentivem aprendizado. E adolescentes a partir de 12 anos, com diálogo sobre uso responsável, privacidade, redes sociais e exploração de identidade de forma consciente”.
Pais como modelo
Quantas vezes ouvimos que o exemplo é a melhor escola? Por isso, nada melhor do que apresentar experiências fora do mundo digital para os filhos e mostrar que tudo isso pode ser muito mais legal do que telas e redes sociais: “Compartilhar atividades offline, como esportes, hobbies, leitura ou jogos de tabuleiro, ajuda a normalizar esse equilíbrio”,.
Outra dicas para convencer os pequenos das vantagens de se desconectar são criar zonas livres de tela, como mesa de jantar e quarto, reservar uma hora por dia para convivência sem dispositivo e conversar regularmente sobre conteúdos vistos online. E se surgirem sinais de desregulação emocional, dificuldades de sono ou impactos escolares persistentes, é fundamental buscar apoio profissional.
Diante do abismo geracional entre pais que cresceram sem internet e filhos que já nascem conectados e reconhecer essa diferença já é o primeiro passo: “É normal o adulto sentir-se fora de lugar“. Ele diz que aprender com os filhos também pode ser parte da solução. “Construir uma parceria com a criança transforma a relação em aprendizado mútuo, onde o filho ajuda a entender as plataformas enquanto o pai oferece limites e valores“, sugere.