Quando o Cinema Novo surgiu, nos anos 1960, havia uma busca pelo Brasil real e profundo, assim como no início da fase modernista da cultura brasileira. Nos dois casos, contudo, a maioria dos formuladores e criadores era formada por brancos – principalmente homens – e membros das classes média ou alta. Agora, uma nova onda de criadores tem surgido no cenário brasileiro, com o mesmo propósito de trazer o Brasil real para as telas, porém pela perspectiva de quem realmente viveu e vive essas realidades.
Produtoras pequenas e independentes, surgidas a partir do esforço coletivo de colegas de faculdade e, principalmente, por quem buscava um espaço para mostrar um Brasil muitas vezes ignorado pelo mercado, têm levado às telas o País a partir da perspectiva de diretores e produtores negros, indígenas, LGBT+ e outras minorias. E fazendo bastante sucesso.
“Atualmente, a gente tem uma produção mais diferenciada, que permite ter mais leituras sobre o tipo de representação feita. Falamos muito de longas, mas produção de curtas também. Hoje a gente pode dizer que talvez não tenha nenhum grupo do Brasil que ainda não tenha sido representado”, avalia Gabriel Martins, o Gabito. Ele dirigiu Marte Um, que o tornou o primeiro diretor negro a ter uma obra brasileira indicada para o Oscar.
O diretor mineiro conta que sua paixão pelo cinema iniciou ainda criança, e ao longo das três décadas que se seguiram ele viu uma grande transformação nas telas. “Comecei a ver cinema brasileiro na época do que ficou conhecida como a ‘retomada’, na metade dos anos 1990, início dos 2000. Era um cinema muito concentrado na elite, num mercado de Rio e São Paulo, em grandes produções. Era isso que chegava ao público”, lembra.
“A gente ainda tem um mercado que tem uma identidade e uma sistemática parecidas, mas agora temos muito mais produções que conseguem vez ou outra furar uma bolha. O ciclo de cinema de Pernambuco, a nossa existência como produtora, são exemplos. Somos periféricos, mas com cinco longas-metragens no cinema. São filmes que são vistos, debatidos e acessíveis ao grande público. Não existia isso.”
Debate
Essa questão foi debatida na sexta-feira, 14, no painel Reimaginando o Brasil nas Telas – Vozes Emergentes e Poderosa, no Rio2C, considerado o maior evento de criatividade da América Latina e que reúne alguns dos principais nomes do audiovisual, que terminou no domingo, 16. Além de Gabito, participaram do painel as premiadas diretoras Juliana Vicente e Graciela Guarani
Juliana é diretora do documentário Racionais MCs: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, que recentemente se tornou o sexto filme de língua não inglesa mais assistido do mundo na Netflix. Ela também é criadora da produtora Preta Portê Filmes, fundada há 14 anos a partir de um incômodo (“era raiva mesmo”, conta a cineasta) com o fato de ela não encontrar espaço para mostrar nas telas o Brasil de verdade.
“Quando você é uma criança preta do Brasil, e sobretudo nascida no final dos anos 1980, início dos anos 1990, você não tem nada como referência no cinema. Entrei numa faculdade quase totalmente branca, um espaço hegemônico. Quando comecei na universidade foi estranho”, lembra Juliana. “No primeiro filme eu levei a equipe para um terreiro de umbanda, para mostrar como era. Eles não sabiam, e perceber que aquilo que é sua identidade é a criação de um novo, assusta.”
A criação da Preta Portê Filmes foi uma iniciativa dela, mas contou com a ajuda de colegas e amigos da USP e da Faap. “A razão pela qual abri minha produtora foi porque percebi que eu não ia ter espaço para apresentar meu trabalho, não havia interesse”, explica. “No início a produtora era com uma galera muito branca, são todos meus amigos. Com o tempo o perfil começou a mudar, e hoje ela é majoritariamente preta e indígena”.
Assim como Gabito, Juliana Vicente vê o cinema brasileiro mudando – mas não tanto quanto ela gostaria. “Eu consigo hoje encontrar com vários outros realizadores, o número de realizadores pretos aumentou muito no Brasil, fruto do próprio movimento negro, mas ainda é muito pouco perto do que a gente gostaria. Ainda existe um certo receio, não há uma confiança total na capacidade dos profissionais”, aponta.
Os dois também convergem quando o assunto é o próximo obstáculo a vencer: o financiamento de filmes. “O mercado é completamente viciado no que diz respeito à garantia de dinheiro. Filme independente brasileiro quase não tem chance. Uma rede de cinema, como o Cinemark ou a CineArte, faz apostas certeiras. O filme brasileiro pode ter chances, mas não tem garantias. Filme estrangeiro vai ter mais chance, porque ele já chega com um sucesso no exterior”, exemplifica Martins. “Marte Um não tinha uma grande verba de lançamento, mas teve mídia espontânea grande Ainda assim, não conseguimos passar de 70 salas. Estreamos com 33. Alguns filmes chegam do exterior com 100 salas. É um sistema desenhado pro filme brasileiro naufragar.”
Juliana concorda. “A primeira etapa era a gente fazer e existir como realizador, e vencemos. A segunda era provar que tínhamos algum tipo de projeção possível, e também estamos conseguindo. O próximo passo é fazer com que o mercado entenda que é preciso investir para alcançar as pessoas. Isso será o grande diferencial.”
* As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.