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O divórcio unilateral e liminar: paradigma jurisprudencial que atende à realidade familiar moderna e efetiva a tutela de direitos do cônjuge

Este artigo analisará a decisão do STJ e apresentará a relação do julgado com essa tendência no Direito das Famílias, que surge em atendimento à realidade familiar moderna e em busca da efetividade da tutela de direitos do cônjuge.

O Recurso Especial n° 2189134-SP, julgado no dia 18 de março de 2025, pela 3a Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), reafirmou que o direito ao divórcio é potestativo, podendo a dissolução do matrimônio, portanto, ser realizada de forma unilateral por um dos cônjuges. Trata-se do chamado divórcio impositivo ou direto. O colegiado também ratificou a possibilidade de decretação liminar do divórcio, apontando como técnica processual adequada o julgamento antecipado parcial do mérito.

A decisão está em consonância com a Emenda Constitucional n° 66/2010 e com o correlato entendimento do Supremo Tribunal Federal no Tema 1.053 de Repercussão Geral (RE 1167478). Tal entendimento demonstra um movimento de mudança no Direito das Famílias, qual seja, o afastamento ao patrimonialismo, ao patriarcado e à influência religiosa e, por sua vez, a aproximação da aplicação direta das normas e princípios constitucionais, especialmente no que diz respeito à efetividade da tutela do direito de ação por meio da adequação da técnica processual. Este movimento não se limita aos tribunais, mas abrange o legislativo e o campo jurídico em geral.

Este artigo analisará a decisão do STJ no REsp n° 2189134-SP e apresentará a relação do julgado com essa tendência no Direito das Famílias, que surge em atendimento à realidade familiar moderna e em busca da efetividade da tutela de direitos do cônjuge.

Divórcio como direito potestativo

 No julgamento do recurso, a relatora Min. Nancy Andrighi aduziu em seu voto a natureza potestativa do direito ao divórcio, afirmando que a Emenda Constitucional n° 66/2010 inaugurou uma nova era para o direito de família. A emenda extinguiu a necessidade de haver separação judicial por mais de um ano ou separação de fato por mais de dois anos para que o casamento pudesse ser dissolvido por meio do divórcio. Esses requisitos para decretação do divórcio, como assentado pelo Min. Luiz Fux em seu voto no RE 1167478, tinham origem no dogma religioso da indissolubilidade matrimonial, que influenciou diversos países ocidentais e até mesmo orientais em seus respectivos ordenamentos jurídicos.

Ao definir direito potestativo, a decisão do STJ se utiliza da doutrina de Fernando Noronha, para o qual potestativos são “os direitos que permitem a uma pessoa, por simples manifestação unilateral de sua vontade (isto é, sem a necessidade de concurso de qualquer outra pessoa), modificar ou extinguir uma relação jurídica preexistente, que é de seu interesse”[1]. Dessa forma, para a decretação do divórcio, basta a expressão da vontade de um dos cônjuges, devendo o outro meramente sujeitar-se, dispensando-se qualquer contestação ou abertura ao contraditório, sendo o outro cônjuge apenas cientificado da decisão. Configura-se, assim, o divórcio unilateral ou impositivo.

A relatora sintetiza a questão em seu voto da seguinte maneira:

 

  • após a Emenda Constitucional 66/2010 o divórcio é compreendido como direito potestativo;
  • a decretação do divórcio independe de contraditório, pois se trata de direito do cônjuge que o pleiteia, bastando que o outro sujeite-se a tanto;
  • basta a apresentação de certidão de casamento atualizada e a manifestação de vontade da parte para que se comprove o vínculo conjugal e a vontade de desfazê-lo;
  • a decisão que decreta o divórcio é definitiva, não podendo ser alterada em sentença; verifica-se possível a decretação do divórcio liminar, mediante o emprego da técnica do julgamento parcial antecipado de mérito, nos termos dos arts. 355 e 356 do Código de Processo Civil.

Ademais, a decisão do STJ referenciou a tese de repercussão geral do STF fixada para o Tema 1.053, a qual estabelece que:

Após a promulgação da EC nº 66/2010, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas que já estão separadas, por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF).

Como bem ensina o Min. Luiz Fux em seu voto no RE 1167478, o divórcio unilateral privilegia a dignidade da pessoa humana, bem como uma proteção mais ampla da esfera individual e da autonomia da vontade, visando a proporcionar o pleno desenvolvimento da personalidade do indivíduo. A realidade familiar não pode ser forçosamente enquadrada em modelos pré-concebidos pela lei, afirma o ministro.

Isto é, o indivíduo não pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das vontades dos governantes, devendo o Estado deixar de interferir injustificadamente na vida privada, em observância dos direitos à intimidade e à privacidade (art. 5°, caput e inc. X, CF), bem como dos direitos à liberdade e à busca da felicidade (arts. 1°, III, e 5°, caput, CF). De igual modo, devem ser observados os vetores constitucionais da igualdade e liberdade nas relações familiares, assim como da liberdade religiosa.

Em consonância com o exposto pelo ministro, Sarah Saad, em sua obra “Divórcio impositivo: da autonomia privada à dignidade humana”, de 2023, afirma que: “O divórcio impositivo simboliza nitidamente a passagem de um direito de família patrimonialista para um direito civil conduzido pela dignidade da pessoa humana”. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, por meio da Opinião Consultiva 24/2017, assentou que:

(…) do princípio da dignidade humana deriva a plena autonomia do indivíduo para escolher com quem quer manter um vínculo permanente e marital, seja natural (união de fato), ou solene (matrimônio). Esta escolha, livre e autônoma, forma parte da dignidade de cada pessoa e é intrínseca aos aspectos mais íntimos e relevantes de sua identidade e projeto de vida (artigos 7.1 e 11.2)

A reforma operada pela EC 66/2010 e aplicada pelo recente julgado do STJ, portanto, maximiza o alcance e a eficácia dos direitos à liberdade, à igualdade, à felicidade, à vida privada, à autodeterminação e ao livre desenvolvimento da personalidade, por meio da facilitação da dissolução do casamento, buscando a efetivação de uma vida digna, como ensina o Ministro Fux, sendo tal conclusão reafirmada acertadamente pela decisão do STJ.

Decretação liminar do divórcio

A decisão do STJ também consolida a prática que já vem sendo adotada nos tribunais brasileiros da decretação liminar do divórcio, colocando como técnica processual adequada para esse fim o julgamento antecipado parcial do mérito, disposto no artigo 356 do Código de Processo Civil (CPC), o qual autoriza que o juiz decida parcialmente o mérito quando um ou mais pedidos formulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso ou estiver em condições de imediato julgamento.

Nesse sentido, bem assentou a ministra Nancy que “a decisão que julga parcela de mérito, em verdade, não antecipa o julgamento: ele ocorre no momento em que deve ocorrer”. Citando a doutrina de Marinoni, Arenhart e Mitidiero, a relatora aduz que qualquer dilação processual é indevida a partir do momento em que o processo se encontra maduro para julgamento.

 

Na medida em que o contraditório e a dilação probatória, neste caso, são dispensadas, por se tratar de direito potestativo plenamente protegido pelas disposições constitucionais, a decretação liminar do divórcio é medida que se impõe, bastando para tanto a apresentação de certidão de casamento atualizada e a manifestação de vontade da parte para que se comprove o vínculo conjugal e a vontade de desfazê-lo. Trata-se, sobretudo, de se promover uma tutela adequada, efetiva e tempestiva do direito de ação, realizando a distribuição adequada do ônus temporal do processo, como bem dispõe a ministra em seu voto.

Ao tratar sobre o tema em sua obra “Divórcio Liminar: técnica processual adequada para sua decretação”, de 2022, Marília Pedroso Xavier afirma que “Quando um pedido de divórcio liminar é negado, temos o cenário ideal para a prática de inúmeros atos de vingança privada”. A autora aborda que não é incomum que os processos na área da família perdurem por longos anos, sendo muitas vezes utilizados por um dos cônjuges como estratégia de desgaste para forçar um acordo desvantajoso ou para preservar algum tipo de ligação com a outra parte.

A decisão do STJ, consequentemente, dispõe que “não se pode admitir que a decretação do divórcio aguarde a localização do réu e sua manifestação”. Deve haver a decretação do divórcio independente de citação prévia do outro cônjuge ou de sua manifestação no processo, sendo realizada apenas a comunicação dessa decisão à parte. A decretação do divórcio, no entanto, seria passível de impugnação pela via do agravo de instrumento, como estabelece o §5° do artigo 356 do CPC.

Por fim, a relatora aduz que as demais questões relacionadas ao divórcio, como a partilha de bens e regulamentação de guarda, convivência e fixação de alimentos aos filhos ou aos cônjuges, devem seguir o processo de conhecimento, com a produção probatória necessária e efetiva manifestação da outra parte.

Dessa forma, tem-se que a questão processual relativa ao divórcio liminar pode ser sintetizada da seguinte maneira:

 

  • a decretação liminar do divórcio é medida que se impõe; a técnica processual adequada para tanto é o julgamento antecipado parcial do mérito (art. 356, CPC);
  • a decisão liminar que decreta o divórcio é passível de impugnação por meio de agravo de instrumento (art. 356, §5°, CPC);
  • dispensa-se citação prévia, contraditório ou qualquer manifestação do réu, visto que se trata de direito potestativo, devendo a parte apenas ser cientificada da decisão; e
  • demais questões relativas ao divórcio (e.g. partilha de bens) devem seguir o processo de conhecimento, com a produção probatória necessária.

Divórcio unilateral e reforma do Código Civil

A discussão acerca do divórcio unilateral tem ido além dos tribunais e da doutrina, fazendo-se presente no meio legislativo. O PL n° 4/2025, que trata sobre a reforma do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), traz em seu artigo 1.582-A a possibilidade do divórcio unilateral extrajudicial, o qual se daria por requerimento no Cartório do Registro Civil em que está lançado o assento do casamento. Demais questões relativas ao divórcio, como a partilha de bens, não poderiam ser realizadas extrajudicialmente, exceto a alteração no nome, a qual também poderia ser requerida junto à dissolução do casamento.

Cabe fazer menção também ao Provimento n° 6/2019, da Corregedoria-Geral de Justiça de Pernambuco (CGJ/PE), a qual havia regulamentado o procedimento de averbação de divórcio unilateral nos serviços de registro de casamento. Contudo, o provimento acabou sendo revogado por determinação do Corregedor Nacional de Justiça.

Conclusão

O Recurso Especial n° 2189134-SP tornou-se um paradigma jurisprudencial na medida em que ratifica um movimento no Direito das Famílias de aproximação real às normas e princípios constitucionais, especialmente no que diz respeito à efetividade da tutela do direito de ação por meio da adequação da técnica processual, consolidando o divórcio liminar e estabelecendo como técnica adequada o julgamento antecipado parcial do mérito.

Tais medidas têm o condão de distribuir adequadamente o ônus temporal do processo às partes, contribuindo inclusive para reduzir o volume de processos acerca de tal temática em trâmite no Judiciário, bem como efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Como bem pontua o Min. Luiz Fux, o vetor constitucional da igualdade e liberdade nas relações familiares é imperativo.

Em conjunto com avanços legislativos, entendimento doutrinário e a jurisprudência de outros tribunais (especialmente o STF), a decisão do STJ contribui, em última análise, para que o Judiciário esteja de acordo com a realidade familiar moderna e para que as pessoas possam ter suas necessidades de fato atendidas e seus direitos efetivamente tutelados.

Gabriela Marcondes L. Camargos; Adelcimon Junio P. Nunes e João Gabriel S. Dalapicola

 

[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 2.189.143-SP, Relatora: Min. Nancy Andrighi, julgado em 14 mar. 2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 14/05/2025.

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