Em meio à programação do É Tudo Verdade destaca-se o extraordinário Nada Sobre Meu Pai, de Susanna Lira, em cartaz hoje, 19h, na Cinemateca. Nessa obra muito pessoal, a diretora busca pelo pai que não conhece e sobre o qual tem apenas informações difusas. Ela nasceu da ligação entre sua mãe e um rapaz de origem hispano-americana, que estava no Rio em 1970. Logo após, ele sumiu na voragem daqueles anos de chumbo, com seus regimes autoritários e a militância que os combatia.
Do pai, Susanna sabia apenas o nome, provavelmente cognome, em função da militância clandestina. Não havia fotos. Apenas o apelido entre companheiros – Quito -, que levava a crer fosse equatoriano. E é justamente ao Equador que Susanna viaja à procura desse pai hipotético. Vai para Quito com uma pequena equipe, publica anúncios e é entrevistada por rádios e TVs. Parte desse material é usada no filme.
Nada Sobre Meu Pai é exemplar dos chamados “documentários de busca”. Documentários são diferentes de filmes de ficção. Não podem ser planejados e previstos em seus mínimos detalhes. O acaso e a incerteza não apenas fazem parte, mas reinam em sua filmagem. São o sal desse gênero. E mostram-se ainda mais presentes no caso de Susanna, em que são mínimos os elementos a orientar a busca. Ela se move no escuro. E o filme é o registro dessa trajetória errática que avança em terreno desconhecido.
Ao chegar a Quito, ela logo se dá conta da dificuldade do projeto. Na polícia equatoriana não existem registros do nome usado pelo pai no Brasil. A diretora não desanima. Insiste, procura, encontra e fala com antigos combatentes de esquerda dos anos 1970. Às vezes, pensa estar próxima de descobrir o paradeiro do homem, para logo se dar conta de que tudo permanece incerto, difícil, ambíguo. O tempo apaga muitos rastros, mas deixa feridas e dúvidas. E há uma espécie de bem-vindo subproduto dessa busca. Procurando, ela levanta um pouco mais o pano sobre esse período de violência política, responsável por muitos traumas ainda por serem curados, se é que algum dia o serão.
Na ditadura
A cineasta já se havia debruçado sobre a época da ditadura no belo Torre das Donzelas, apelido da ala feminina do presídio Tiradentes, em São Paulo, na qual ficavam as militantes presas. É um filme muito tocante e que, por onde passou, comoveu as pessoas. Mas, no caso de Nada Sobre Meu Pai, ao elemento político soma-se o pessoal. O que acrescenta nova tonalidade emocional ao filme.
Na contrapartida desse envolvimento, surge um grau de exposição pessoal a que a diretora não estava acostumada. Talvez por isso, nas primeiras vezes em que ela aparece na tela, sua imagem seja desfocada e em segundo plano. Aos poucos, vai surgindo de maneira mais nítida. Como se no início hesitasse em entrar naquela história que, no fundo, era a sua mesma e da qual aos poucos vai tomando posse. Procurando, ela descobre a si mesma.
É a sua história, mas não apenas dela. O grande valor de casos pessoais contados na tela é que, através da obra, se tornam de interesse coletivo, de domínio público, por assim dizer. Neste caso, temos algo a mais do que o relato de uma filha em busca do pai que não conhece. No contracampo, emerge toda uma época inglória dos países latino-americanos submetidos a regimes de exceção. Apenas nesse ambiente deletério histórias como essa se tornam possíveis. A história, tão pessoal, fala de todos nós.
* As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.