Categories: Paula Santana

Multifuncional: o novo teatro brasiliense está em cena

Blecaute. É quando se apagam as luzes de um espetáculo. Ouvem-se as risadas: são os teatrólogos Alexandre Ribondi e Hugo Rodas se encontrando. O escuro representa o lado de lá, o mistério sobre haver existência após o cerrar dos olhos. Hugo partiu em 13 de abril de 2022, 82 anos após nascer em Juan Lacaz, no Uruguai. Ribondi, em 10 de junho de 2023, depois de 70 anos ter nascido em Mimoso do Sul, Espírito Santo. Ambos dedicaram, cada um, ao menos cinco décadas de suas vidas ao teatro brasiliense. E agora, no blecaute, sorriem.

Essa brincadeira pretensiosa de transpor o texto jornalístico em dramatúrgico fica por aqui. É que o teatro é, sobretudo, o espaço das honestidades. E seria desonesto escrever sobre mestres, legados e renovações sem ser assim. Essa reportagem começou falando sobre eles, mas não será sobre eles. Será sobre ausência e presenças. Aos dois, Evoé. É como os artistas do palco desejam boas vibrações, seguindo a tradição de Baco, o deus do teatro da Grécia antiga.

Aqui, conheceremos alguns dos que são a geração de criadores do agora, que ainda estão na casa dos trinta, mas têm experiência suficiente para serem vistos como herdeiros de legados e também dirigem com autoria, renovando a linguagem da cena: Ava Scherdien, Geise Prazeres, Gustavo Haeser e Vinícius Ávlis.

Quem são

Ava é uma mulher trans, negra, não binária. Duplamente habilitada e mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisa corporeidades, teatro performativo, negritude, decolonialidade e arte educação. Também é onde se formou Gustavo e onde Vinícius estuda. Ávlis criou a Companhia Bisquetes, na Cidade Estrutural, onde vive, e formou-se bailarino e artista cênico em inúmeros espaços, como a Oficina do Ribondi, onde hoje é diretor, e tem três espetáculos autorais. Gustavo tem pelo menos vinte anos de carreira e fundou há dez o Grupo Tripé, que tem três espetáculos e iniciativas como o Prêmio Web de Teatro e uma exposição de imagens de uma década de teatro na cidade. Geise esteve e permanece na Oficina do Ribondi, agora como uma das diretoras. Fez Cênicas na Faculdade Dulcina de Moraes. É negra, mãe solo, moradora de São Sebastião. Dirige peça escrita por Vinicius.

Nenhum deles apenas dirige. “Sou diretora, produtora, intérprete, dramaturga e, às vezes, tudo junto. O Coletivo de Teatro Enleio [do qual é fundadora] também segue um padrão da cidade, de fazer peças autorais, que questionam muito poética e diretamente a sociedade”, diz Ava. “A cena é múltipla, tem nomes na comédia do improviso, na performance, no teatro vanguardista. Sinto que há uma busca muito grande no fazer cênico. Não estamos no Eixo Rio-São Paulo, mas nossas produções não ficam por baixo. É um teatro que está cada vez mais performático, o que me intriga e me faz pesquisar cada vez mais”, define Vinícius.

De fato, hoje, entrar no teatro significa acessar muita pesquisa sobre performance, território e vivências. Vinícius fala muito sobre a potência periférica e comunga a pesquisa sobre corpos LGBT com Ava. Para Gustavo, “é um teatro comprometido com a criação e o fortalecimento de comunidades e territórios, com a emancipação dos indivíduos, que está em disputa frontal pela narrativa de uma cidade que se fez voltada para política e que esquece que a política é feita de gente, e não só de prédios bonitos. É plural e politizado”.

Legados

Embora sejam autores e criativos, eles valorizam os legados que herdam. “Fui demitida, não tinha mais como pagar a faculdade e tive que parar. Continuei indo ao Dulcina, participando como atriz em mostras, até que encontrei um tal de Morillo e uma tal de Luísa de Marillac e vim parar na Casa dos Quatro”, conta Geise, aos risos, sobre o autor deste texto e a atriz que, junto com Ribondi e Elisa Mattos, fundaram o espaço cultural. “E foi quando tive contato com o Ribondi e outros diretores da cidade, como o Tullio Guimarães”, completa. Uma relação que ficou.

Espaço também de Vinícius, hoje, diretor na Casa dos Quatro, além de preparador e ensaiador do projeto Felicidade 2, que ocorre no Sol Nascente – no qual Ribondi ia à periferia para dirigir e escrever uma peça com jovens LGBT+. “Em 2015, ganhou uma bolsa para sua Oficina. Em 2017, virou ator do projeto Felicidade, com grupo LGBT da Estrutural. Com olhar de discípulo, vou experimentando também o texto dramatúrgico, pois ele é para mim uma referência na escrita e na territorialidade com Brasília. Nunca vou me esquecer de algo que ele me disse depois de assistir a uma peça minha: ‘sempre escreva sobre aquilo que você sabe’. Ribondi foi muito generoso em todas as instâncias, abriu a porta do teatro, alavancou-me como ator, dramaturgo, potencializou-me e me colocou de igual para igual no trabalho cênico. É meu grande mestre”, define.

Haeser trabalhou com ambos. “Com Ribondi fiz curso de iniciação teatral, além de a Casa dos Quatro ser parceira essencial pro Tripé, abrigando ensaios, apresentações, reuniões… Com Hugo, tive uma vivência mais intensa, no Grupo de Técnicas Experimentais em Artes Cênicas que ele conduzia na UnB”, revela. “Tive embates e discussões fortes com os dois, mas sempre num espaço e contexto de respeito e aceitação de divergências. Foram criados muito antes das discussões de hoje, mas sempre fiz questão de apontar, e na maioria das vezes isso rendia conversas maravilhosas e alguns pedidos de desculpa. Tento incorporar o que considero relevante e potente deles, mas em busca de uma simbiose com o que avançamos nos últimos anos nas discussões de gênero, de métodos e formas de trabalho”, recorda.

“Quando se é artista da cidade, respira-se, dedica-se e se cruza com essas figuras emblemáticas das artes, você acaba levando consigo um pouco de cada um. Deixaram seus nomes, estéticas e obras em corpos que continuam fazendo jus a eles”, reflete Ava, ampliando o debate: “o que me entristece talvez é que a cidade em si, o governo, não reconheçam com tanta dignidade. A Faculdade Dulcina de Moraes está em leilão, sendo que deveria virar um patrimônio imaterial, entende?”. Sim: o leilão está marcado para setembro.

Projeções

É importante que se diga que há inúmeros pioneiros do teatro na ativa, outros tantos são do interregno entre os pioneiros e a geração atual – e os entrevistados aqui são parte de um coletivo profuso. E todos, perguntados sobre o amanhã, disseram que só esperam seguir trabalhando, seguir pesquisando.

Ava pretende estudar imersivamente artes corporais em Bolonha, na Itália, e, por isso, está em campanha de crowdfunding. E é difícil. “As oito peças do Coletivo são autorais. Nós nos apresentamos em quase todos os teatros de Brasília, alguns de fora. Mesmo com perspectiva de sucesso e realização, ainda é um grupo instável, que persiste por campanhas coletivas, apoios e editais”, revela, sem deixar de sonhar: “comecei a me aventurar pro audiovisual como diretora [em filmes como Poderia me Chamar Adeus] e quero traçar muitos caminhos aí. E quero ter um galpão de Artes, abrir caminhos para artistas daqui e de fora. Meu maior sonho é me manter de arte, crescer, ajudar os meus e seguir fazendo o que me dá ânimo de acordar todo dia – que é arte”.

Vinícius já circulou também por boa parte dos palcos brasilienses e se apresentou pelo País e fora, no Peru, com as peças Duas Doses num Único Gole e A Morte nas Mãos de Quem?. “Eu sou fissurado pelo trabalho, pelo teatro, pelo fazer cênico. Pesquisar, estudar mais. Consegui atingir espaços interessantes, meu trabalho tem ganhado esses espaços”. Geise também. “Já tive uma fissura de querer ir para a TV, mas não. Quero ter sucesso no que estou fazendo e, antes, quero aprender mais, estar preparada. Claro que se algo cair na minha mão não vou perder oportunidade, até porque sou uma favelada preta. Não busco algo maior que meu alcance agora, porque quero cuidar muito bem da base e estou só começando”, diz.

“Quero seguir criando o que a minha pulsão de vida estiver brilhando. Equilibrar bem criações artísticas com projetos de valorização, mapeamento e memória das Artes Cênicas. Quero crescer junto, em coletivo, expandindo a cena cultural do DF e estabelecendo esse lugar como ponto de encontro do Brasil, e não uma ilha da fantasia onde existe uma lei do silêncio para não atrapalharmos o sono daqueles que já tem tudo garantido”, projeta Haeser. “Queremos um movimento cultural forte e do tamanho da sua potência, que é gigante, e é por isso que seguiremos criando outras iniciativas que caminhem nesse sentido. O Distrito Federal transborda teatro!”, conclui.

São experientes o suficiente para ditar rumos. E não estão sós. Evoé!

 

*Matéria escrita por Morillo Carvalho para a Revista GPS 37

Redação GPS

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