Segundo os primeiros registros, a prática de misturar bebidas alcoólicas com outros ingredientes remonta à Antiguidade. Na Grécia Antiga, já era comum adicionar mel, ervas e frutas ao vinho, principalmente com fins medicinais. No entanto, registros apontam que o primeiro coquetel propriamente dito teria surgido na Índia há cerca de 1.500 anos, segundo o Difford’s Guide, referência mundial da coquetelaria.
Conhecido como punch, o preparo combinava destilados, açúcar, especiarias, água e frutas cítricas. A receita atravessou continentes no século XVII, levada por colonizadores ingleses à Europa, onde rapidamente se popularizou. A coquetelaria moderna, com técnicas e receitas padronizadas, começou a se estruturar no século XIX, tendo como um de seus grandes pioneiros Jerry Thomas, considerado o primeiro grande bartender profissional da história.
Nos dias atuais, o universo da coquetelaria vem ganhando novos sabores nas mãos de mulheres que desafiam barreiras históricas, sendo criativo, inovador e cada vez mais diverso. O GPS|Brasília conversou com três talentos da cena: Ana Negra, Mafé Bastos e Isadora Bello. Entre os desafios da profissão, episódios de assédio e momentos de criatividade, elas provam que é possível transformar a coquetelaria em um espaço de protagonismo e representatividade.
Natural de Cascavel, Paraná, Maria Fernanda Oliveira Bastos, de 28 anos, conhecida como Mafé Bastos, viu sua paixão pelo universo da coquetelaria surgir de forma despretensiosa. Aos 19 anos de idade, a jovem começou a trabalhar em uma balada para ter uma renda extra. “O dono desse local estava abrindo um bar de alta coquetelaria e comecei a trabalhar lá. Desde o início, achei a coquetelaria muito interessante, então quando dei por mim, o freelancer que era pra ser um dinheirinho extra era mais importante pra mim que outros aspectos da minha vida”, comenta Maria Fernanda.
Atuando no mercado há quase dez anos, Mafé já atingiu grandes feitos, como sua participação no World Class em São Paulo, onde chegou na semifinal da competição que elege os melhores bartenders do mundo. A jovem que já desenvolveu cartas de bares como Primo Pobre e Ordinário acredita que dois tipos de bares moldam um bartender, sendo o de alta coquetelaria, onde o profissional pode adquirir técnicas e conhecimento, e o bar de rua, onde é necessário ter agilidade. “Você precisa se desdobrar para fazer oito coquetéis ao mesmo tempo e o tempo todo. No bar de rua, você aprende a trabalhar sob pressão”, explica.
Entre os principais desafios enfrentados ao longo da carreira, Maria Fernanda aponta dois pontos que se repetem: preconceito e assédio. “Os dois maiores desafios são, com certeza, lidar com colegas de trabalho que acreditam que você sabe menos ou é menos habilidosa por ser mulher, e o assédio, que é constante, infelizmente”, relata. Ela lembra episódios delicados. “Já passei por situações em que um cliente tentou me agarrar à força durante o trabalho e também de ser tratada com condescendência, enquanto meus colegas homens recebiam respeito imediato”, compartilha.
Para Mafé, o machismo estrutural ainda molda a dinâmica dos bares. “Sempre falo que, além de ensinar a trabalhar em um bar, eu preciso ensinar o cara a ser gente”, desabafa. Segundo ela, não é raro o cliente buscar solução nos bartenders homens, mesmo quando a liderança feminina é evidente.
“É engraçado ver a cara de confusão quando percebem que sou eu quem resolve as questões mais sérias. Dá até vontade de rir”. Ainda assim, ela reforça. “Nós, mulheres, sempre temos que nos provar um pouquinho mais em ambientes considerados ‘masculinos’. Se eu não souber cada detalhe técnico, sou descredibilizada, enquanto homens precisam apenas demonstrar o básico para serem valorizados”, pontua.
Quando o assunto é criação, o estilo preferido é a simplicidade unida a técnica refinada e uma boa dose de brasilidade. “Gosto muito da coquetelaria clássica pela técnica e pelo refinamento, mas gosto muito dos ingredientes do Cerrado. Acho sensacional o tanto de coisa gostosa, esquisita e marcante que tem por aqui. Minha expressão favorita é quando a pessoa vai provar o drink e no primeiro gole a cara dela é de completa confusão, até que vai entendendo de onde está vindo cada sabor e vai aos poucos desvendando o coquetel, acho esse momento sensacional”, revela a profissional.
Além da criatividade, a bartender valoriza o conhecimento teórico como ferramenta essencial para inovar. “Uma base sólida é o que permite a criatividade realmente brilhar. Quando você entende o propósito de cada ingrediente, consegue buscar novas formas de atingir o mesmo objetivo, criando combinações inesperadas e únicas”, explica.
Pensando no futuro, Maria Fernanda acredita em uma coquetelaria mais inclusiva e valorizada. “Quero mostrar que não existe isso de não gostar de um ingrediente, você só não gosta dele ainda”, brinca. Ela também destaca a importância de mudanças estruturais na profissão. “Prosperar nessa profissão é um ato de resiliência. A coquetelaria anda junto com a gastronomia nesse sentido, onde o que faz as pessoas ficarem é o amor pelo que faz e não o trabalho em si. Seria legal ver essa realidade mudar”, comenta Mafé.
Brasiliense e apaixonada pela arte de misturar sabores, Ana Claudia Silva, de 31 anos, conhecida como Ana Negra, encontrou na coquetelaria um caminho inesperado para sua vida profissional. “Trabalho há mais de oito anos, mas foi há cerca de seis que decidi seguir carreira de verdade. Não foi algo programado, um freelancer virou amor”, conta.
Entre os momentos mais marcantes da sua trajetória, ela destaca uma conquista que mudou sua vida. “Ganhar a competição global Johnnie Walker Bartender Competition e sair pela primeira vez do Brasil por meio dela foi um divisor de águas”, compartilha. Entre outros aprendizados, a profissional comenta sobre a importância de ter noção sobre logística e gestão de pessoas. “O DIAGEO Bar Academy e o Learning For Life aprofundaram meu conhecimento teórico sobre a profissão”, explica.
Apesar das conquistas, Ana enfrenta desafios que ainda marcam a presença feminina na coquetelaria. “Ser respeitada sem precisar ficar provando capacidade de entrega o tempo inteiro”. Segundo ela, a subestimação é um problema recorrente. “Quem não me conhece, me subestima. Hoje atuo na área educativa e sempre é um desafio ser levada a sério antes de mostrar minha capacidade”, comenta a profissional.
Com fortes referências no setor, Ana cita nomes que a inspiram. “Laís Ladrine, como bartender e chefe; André Bueno, como educador; e Mestre Dorivan, que é um ícone pela valorização da cultura da coquetelaria nacional”, compartilha a profissional que tem um estilo baseado na chamada coquetelaria afetiva, conceito que une histórias pessoais e cultura nos drinks que cria.
“Sinto que só eu posso me representar no mundo… Sempre coloco parte de mim no copo”, diz. Para equilibrar técnica e criatividade, Ana aposta em “muito estudo, paciência, cuidado nos detalhes e principalmente vivência”.
Ela enxerga mudanças positivas na presença feminina no mercado. “A cada dia estamos sendo mais vistas e botando abaixo portas que já foram fechadas”, diz Negra, que também acredita que as redes sociais foram fundamentais para expandir sua carreira. “A facilidade de dissipar conteúdo foi crucial. As redes são um caminho incrível para romper barreiras mais rapidamente”, comenta.
Sobre seus planos futuros, Ana prefere manter o mistério. “Tenho vários, mas isso fica para quem me acompanha de perto”, brinca. No entanto, ela não esconde o desejo de ver o setor evoluir. “Quero que haja mais valorização dos insumos locais e regionais, mais engajamento acadêmico, regularização trabalhística, e, acima de tudo, a valorização do profissional que serve, sem ser visto como servo”, pontua.
Natural de São Paulo e atualmente “vivendo no mundo”, como ela mesma diz, Isadora Bello, conhecida como Isadinha, de 38 anos, construiu sua carreira a partir da hospitalidade, uma herança dos tempos em que atuava como garçonete em salões. “Minha carreira começou no salão e acho que isso contribuiu muito para que eu conseguisse entregar algo que considero fundamental no bar: hospitalidade”, afirma.
Sua trajetória na coquetelaria teve início quase por acaso, mas ganhou profundidade com o estudo de destilados. Formada em sommelier de cachaça, Isadinha especializou-se em harmonizações e logo expandiu seu conhecimento para outras bebidas. A virada definitiva veio quando um proprietário de restaurante, impressionado com suas aulas, a convidou para atuar atrás do balcão. “Ele me disse: ‘Você conhece mais de bebida, composição e construção sensorial do que metade dos bartenders que eu conheço’. Foi assim que comecei minha carreira no bar”, compartilha sobre o início de sua carreira.
Entre os momentos mais marcantes de sua trajetória, ela destaca a conquista da bolsa de estudos promovida pela Camus Cognac, na França. “Fui escolhida entre apenas cinco pessoas no mundo para uma imersão na produção de Cognac”, relembra com orgulho. Isadinha também é a única mulher brasileira jurada no prestigiado Mundial de Bruxelas, uma referência internacional no universo dos destilados.
Apesar dos avanços, Isa reconhece que ainda há muitos desafios, principalmente no que diz respeito à presença feminina no mercado. “Vivemos um cenário muito ainda dominado pelo patriarcado de forma velada. A mudança acontece, mas lentamente. Muitas mulheres ainda sentem medo de falar e de ocupar seus espaços”, aponta. Para ela, iniciativas que dão voz às profissionais do setor são essenciais para acelerar essa transformação.
As inspirações de Isadinha vêm tanto do passado quanto do presente. Ela reverencia as pesquisadoras latino-americanas que desbravaram ingredientes locais e destaca contemporâneas como Keila da Curuputuba e Irani Arteti. “Essas mulheres fazem uma pesquisa gigantesca sobre nossos ingredientes. Nós, bartenders, temos a missão de traduzir essa riqueza em experiências sensoriais”, diz.
Com um trabalho conectado aos ingredientes brasileiros, Isadinha acredita que isso representa a essência de seu trabalho. “Olhar para o que temos perto com técnicas que ampliem seu valor é uma forma de manter nossa cultura viva”, defende. Segundo ela, um bom bartender precisa mais do que técnica e criatividade. “É preciso entender o conceito da casa, a vocação do espaço e dos ingredientes locais. Ideias são fáceis, mas transformar essa equação em algo viável, sustentável e comercialmente interessante é o verdadeiro diferencial”, explica.
O futuro, para Isadinha, é de multiplicação. Seus planos giram em torno de fortalecer a presença dos ingredientes locais na coquetelaria brasileira e de formar novas gerações conscientes dessa riqueza. “Quando a gente entende que o Brasil é nossa maior riqueza, começamos a mudar todo o aspecto de consumo e valorização. O mundo já percebeu isso. Agora é a nossa vez”, conclui.