Um gênio, um louco, um gordofóbico de fala grossa. Cabelos claros, óculos escuros, gravata, mão enluvada. Um homem que amava as mulheres — fossem magras. Um homem que gostava de usar discórdia.
Por consecutivas décadas, Karl Lagerfeld foi consagrado e benzido ‘kaiser’ da moda: o faraó, o maestro, o apresentador do picadeiro. Um ícone que enxergava a estética sem tempo para o passado — tinha sede de futuro! Falho, era cheio de preconceitos para lá de conceituados — e de declarações que refletiam uma mentalidade antiga, datada. Mais velha que as pirâmides. Na era do cancelamento (ou do pós-cancelamento, e isso é amplamente debatível), o museu mais mediático do globo escolhe honrar uma figura extremamente ‘cancelável’. Se o tapete vermelho do Met Gala 2023 foi pintado de preto e branco, as opiniões a respeito do tema Karl Lagerfeld – A Line of Beauty, habitavam uma região cinzenta.
Logo que foi anunciado em setembro de 2022, o mote que celebra o legado do finado designer alemão gerou polêmica e demandou jogo de cintura. No auge de sua carreira, Karl não escondia seus sentimentos e repúdio a pessoas gordas, sua falta de paciência para o movimento feminista #MeToo e um enorme desdém por uma variedade de minorias e causas humanitárias.
“Ninguém quer ver mulheres com curvas!“, disse à Revista Focus, em 2009. “Se você não quer ter suas calças abaixadas, não vire modelo. Entre para um convento!“, declarou para a revista Número após acusações de assédio sexual contra o designer Karl Templer. “Heidi Klum não é uma modelo de passarela. Ela é simplesmente muito pesada“, referindo-se à top conterrânea. A lista segue.
Em seu tempo, a língua afiada de Karl — como era diminutamente descrito seu incabível comportamento — era vista com olhos de graça. Um dos muitos traços da sua forte personalidade, a insígnia de um gênio não compreendido. Hoje, são sequências de pensamentos que já não colam mais. No caminho dessa corda bamba, teve quem optou por não subir, teve quem caminhou com confiança, teve quem caiu.
Pelo tapete vermelho, celebridades se repartiam entre beijos e farpas. Jeremy Scott e Devon Aoki se debulharam em elogios internet a fora, enquanto Viola Davis, de Valentino Couture, é acreditada ter elegido o look full pink como modo de protesto à celebração (apesar dos incontáveis looks rosados em quase todos seus desfiles para a Chanel, é tido por aí que o designer detestava a cor). Enquanto nas redes sociais espectadores levantavam forcados e manifestavam sua indignação, os célebres convidados faziam de tudo para não pisar em ovos, afinal, encontrar um posicionamento não é fácil.
Uma atitude pró-Karl significa fechar os olhos para o racismo, a gordofobia, a xenofobia e mais um monte de “ismos” e “ias” que não têm espaço na sociedade contemporânea. Em contrapartida, um parecer anti-Karl fecha as portas para as oportunidades, relações e benefícios que, mesmo falecido, o estilista — e sua legião de amigos e admiradores que estão muitíssimo vivos e influentes — ainda oferece. Sabe aquela história de “se ficar o bicho pega?”. É isso.
Há como separar arte de artista? Kanye West de Life of Pablo? Karol Conká de Mamacita? John Galliano foi afastado da Dior quando declarações antissemitas vieram à tona. Hoje, a Saddle Bag, criada durante seu tempo à frente da grife, é um dos produtos de maior sucesso da casa. Dolce & Gabbana têm um histórico que posicionamentos problemáticos que nem se fala, mas atire a primeira Sicily quem não se deleita em cada lançamento da marca.
No final de 2022, Balenciaga esteve à frente de um dos mais recentes e abrasados cancelamentos do mundo da moda. Mexeu com um assunto que é tabu, que é delicado, que, em essência, não se mexe. Passaram-se mais de seis meses e nada do mundo perdoar. Será que em cinco, 10, 20 anos, comentaremos um Met Gala em honra ao Demna? Ou nossa capacidade de perdoar o imperdoável chegou ao limite?
Karl era um homem de outro tempo. Nasceu na década de 1930, viu guerra, recessão, depressão, Alemanha Nazista, Primavera Árabe. Fosse hoje, teria quase 90 anos completos, mas o mundo muito mudou desde eu falecimento em 2019. Coronavírus, Black Lives Matter… O estilista que condenava moletons viveria pela febre do lounge wear pandêmico. Teria ele aprendido? Mudado? Existe chance de darmos essa chance?
Desde que normalizou-se o cancelamento, é colocado em pauta o quanto o ser-humano é capaz de redenção. Estamos todos vivendo no inferno de Sartre, onde, etiquetados para toda a eternidade, perdemos nossa capacidade de progredir e mudar?
A evolução natural do errar é o aprender. Negados essa oportunidade, somos usurpados de um direito e uma dádiva que são nossos por nascença: o de crescer. Karl não demonstrou esse interesse em vida, cabe a nós esquecê-lo ou transformar seu legado. Cabe a nós lançar cor em seu mundo preto e branco. Sem hipocrisia roxa, sem sorriso amarelo, mas sim, com um verde verdadeiro do florescer de uma nova era.