Uma comédia que começa com a tela escura e uma voz em off já nos conquista nos primeiros minutos! É a primeira sacada genial de Saneamento Básico, O Filme, uma comédia/sátira lançada em 2007, que até hoje, em pleno 2025, continua atual, entregando um humor debochado, ácido, inteligente e muito divertido.
E o responsável por tudo isso é o roteirista e diretor Jorge Furtado, um nome que é referência no cenário audiovisual brasileiro, tanto no cinema (por exemplo O Homem que Copiava, Rasga Coração, Lisbela e o Prisioneiro), quanto na TV (Sob Pressão, Os Normais, Mister Brau entre muitos outros sucessos).
Jorge Furtado acumula vários prêmios ao longo da carreira com destaque para o telefilme Doce de Mãe, que levou dois Emmys (o maior e mais prestigioso prémio internacional atribuído à programas e profissionais da televisão): em 2013 o Emmy internacional de melhor atriz para Fernanda Montenegro e em 2015 (já transformado em seriado) como melhor série de comédia.
Mas aqui vamos nos focar em Saneamento Básico, O Filme que já era uma das minhas comédias de vida. Me lembro de assistir a uma live, promovida pelo MIS – Museu da Imagem e do Som de São Paulo, em 26 de dezembro de 2020 exatamente sobre o filme com a presença de Jorge Furtado, fiquei ainda mais fã dessa comédia que nunca envelhece.
Ele conta que houve uma época em que era completamente apaixonado por Shakespeare, a ponto de achar que nada se igualaria àquela dramaturgia. Obcecado pelo bardo, achou por bem fazer uma pesquisa sobre o que existia antes de Shakespeare, e se encantou pela Commedia dell’arte, teatro popular que começou na idade média e permaneceu até o século XVIII.
Tinha como espinha dorsal personagens tipificados e estereotipados, que contavam as mais diversas histórias. Eram companhias itinerantes cada qual com o seu elenco fixo onde cada ator representava sempre o mesmo tipo caricaturado, que se apresentavam tanto nas ruas quanto nos palácios, viajando por toda a Europa. As apresentações partiam de roteiros simples e enxutos, dando lugar a improvisações que faziam a alegria do público.
Jorge Furtado partiu dos oito principais personagens fixos da Commedia dell’arte para criar os oito personagens principais de Saneamento Básico.
Essa história é tão rica que não cabe em uma única resenha; só para citar alguns, os dois velhos (o veneziano culto e o burguês usurário que estavam sempre às turras) são representados por Paulo José e Tonico Pereira. A cena em que os dois discutem sobre uma pinguela é pura Comédia dell’arte, num duelo de atuação em que os estereótipos estão ali claramente representados, numa história que se passa quase 6 séculos depois.
Wagner Moura é o típico Arlequino e Fernanda Torres a Colombina, ambos já demonstrando o imenso talento que presenciamos ao longo desses 18 anos após o lançamento do filme.
O elenco é formado por um time de atores, que dificilmente seria possível reuni-los hoje em dia; todos estão no auge de suas carreiras. Definitivamente Jorge Furtado é um cineasta de visão! Além dos já citados, completando o elenco temos Camila Pitanga, Lázaro Ramos, Bruno Garcia e Lúcio Mauro Filho.
A primeira questão que se apresenta é justamente “porque fazer cinema se não temos nem saneamento básico?”. É essa a simples premissa do filme, que leva alguns habitantes de uma pequena vila de descendentes de colonos italianos (que não possui saneamento básico), a fazer um filme patrocinado pela prefeitura, que dispõe de verba para um vídeo, mas não para construir uma fossa para o tratamento de esgoto. Se o tal vídeo não for feito, o dinheiro será devolvido ao governo federal.
Então esse grupo de moradores resolve realizar o filme justamente atentando para a necessidade de construção da fossa na cidade.
A feitura desse filme nas mãos desses moradores do interior é o típico filme dentro do filme, numa metalinguagem que exalta o cinema na sua mais pura versão: “o prazer de fazer cinema e o prazer que ele proporciona”.
*Lula Mattos é arquiteta, mas sua paixão sempre foi o cinema. Possui formação em Crítica de Cinema e também fez cursos na área com Alberto Renault e Humberto Silva. É admiradora do chamado “cinema de autor”, mas faz sugestões e produz conteúdo que abrange todos os gêneros, sempre inserindo um olhar pessoal em suas críticas e resenhas.