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Leonardo Bessa: O juiz e o mundo

A vivência do juiz, sua visão de mundo, suas circunstâncias, são úteis ao julgamento? Ou, para manter a imparcialidade, ele deve desconsiderar o que a vida ensina?

O artigo não tem a dimensão filosófica que o título sugere. A discussão é processual, breve e até singela.  

É conhecido, e muito citado, antigo brocardo jurídico: “o que não está nos autos, não está no mundo”, ou seja, o mundo do juiz se resume aos fatos, provas e argumentos apresentados e produzidos pelas partes interessadas no resultado do julgamento.

Nessa ótica, o mundo do juiz é o processo. O juiz deve analisar estritamente os argumentos e a prova dos autos (o que está no processo). O juiz, na sua imparcialidade e equidistância, examina friamente, sem sentimento, o que “está nos autos” e, com isso, pratica a verdadeira justiça.

Mas, como sempre, há o outro lado dessa questão.

 A sociedade organizada deseja uma pessoa experiente para julgar seus pares. Não pode ser juiz quem acabou de ser formar em Direito. A lei exige um prazo. Apesar dos avanços da inteligência artificial (IA), muitos só aceitam pessoas humanas, vivas e vividas, para seus processos. Por quê? Porque o juiz ideal conduz a sensatez, moldada pela vida, ao processo.

A vivência do juiz, sua visão de mundo, suas circunstâncias, são úteis e necessárias ao julgamento dos seus semelhantes; as experiências de vida devem ser levadas ao processo.

A lei é sábia e estabelece, quanto à prova, que “juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece” (art. 375 do Código de Processo Civil-CPC). A experiência do juiz, ser humano que vive em sociedade, não é desprezada. Ao contrário, é valorizada para julgamento dos conflitos humanos.

O art. 375 do CPC, em silencia e “quase sem querer” (Renato Russo), está em todos os processos. É o mundo real influenciando os vereditos.  

A experiência oridunda do que “ordinariamente acontece” afasta, por exemplo, a necessidade do consumidor provar sentimento de angústia e ansiedade diante de negativa do plano de saúde que recusa, injustamente, uma cirurgia urgente.

A mesma experiência indica que não se pode conceder dano moral por alegado sofrimento (dor psíquica) por espera de 15 minutos numa fila de banco. A pessoa pode até sofrer, ficar angustiada, mas não é o que “ordinariamente acontece”. O juiz já sabe disso, mesmo que ele próprio tenha grande intolerância por esperas em filas.  A experiência, referida pelo art. 375, não é necessariamente a própria

Nas ações de alimentos, a parte nem sempre tem condições de provar todos os gastos mensais que precisa para viver com dignidade. O juiz, por ser um sujeito integrante do mundo, sabe estimar o valor necessário (aproximado) para atender às necessidades daquele que pede pensão alimentícia a um parente.

O juiz enfrenta trânsito, leva filho na escola, paga contas, possui celular, faz viagens. A observação do que ocorre a sua volta é utilizada, mesmo que inconscientemente, nos julgamentos.

Na área penal, mesmo sem regra expressa no Código de Processo Penal, o juiz considera as regras de experiência da observação que ordinariamente acontece no mundo. Apenas um exemplo. No crime de lesão corporal, o § 4° do art. 129, do Código Penal, prevê: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”

O juiz, para diminuir a pena, deve, diante das circunstâncias do caso, estabelecer o que pode ser considerado “relevante valor social ou moral”, “violenta emoção”. E, de novo, não é – unicamente – tentar se colocar no lugar da vítima e do réu, mas ter a sensibilidade, com base no que a vida lhe ensinou, do que seria razoável, proporcional e adequado para dar significado às causas de diminuição de pena.

Em resumo, não há separação total entre o que está nos autos e na vida real; o juiz – que deve ser sensato e ponderado! –  é canal do mundo que transforma e dá vida as páginas do processo.

*Leonardo Bessa é doutor em Direito Civil e Desembargador do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT). Respeitado e com uma vasta carreira na área jurídica, também é professor e autor de diversos livros e artigos, destacando-se pela atuação nos ramos de Direito do Consumidor e Processos Coletivos

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