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Inspirada na canção de Luiz Gonzaga, a Casa do Cantador tem os traços de Niemeyer

Espaço foi concebido para promover valorização popular com especial interesse nas tradições do Nordeste
Fotos: Rayra Paiva

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Escrita por Eric Zambon

De pernas cruzadas e sorriso no rosto, a estátua de Alberto Porfírio é a primeira coisa que os frequentadores da Casa do Cantador, na QNN 32 em Ceilândia, enxergam ao irem lá. Enquanto dedilha as notas de uma canção desconhecida, o homem de pedra parece se divertir com quem quer que passe por ele, encarando o público de soslaio por detrás dos oclinhos triangulares. Em 2024, o Cantador e a própria Casa completam 38 anos de existência.

O semblante simples nem parece esconder um passado complexo. O artista que dá nome e forma à obra foi um poeta cearense nascido na década de 1920. Durante a Segunda Guerra Mundial, alistou-se como um dos soldados da borracha, grupo de nordestinos levados ao Amazonas para extrair látex e entregar às tropas aliadas na luta contra os nazistas. Porfírio, porém, era mais chegado na cantoria do que no conflito e desistiu, de última hora, de entrar no navio que o levaria para a missão. A embarcação foi torpedeada e o poeta, salvo pela própria gaiatice, entrou para uma seleta lista de sortudos da humanidade. 

O restante da história do cantador, porém, é muito mais importante e interessante do que esse curioso trecho. São seus diversos cordéis publicados, além de sonetos e composições musicais que o fizeram viajar o Brasil com a sua arte. O seu repente e a poesia o levaram a Brasília, em novembro de 1986, para a inauguração da Casa do Cantador, onde foi homenageado com a estátua.

Foto: Rayra Paiva
Foto: Rayra Paiva

Seu legado, agora eternizado na pedra, é o guardião de um espaço único em Ceilândia. A Casa foi projetada por Oscar Niemeyer, que se inspirou na canção Asa Branca, de Luiz Gonzaga, e se tornou um importante símbolo cultural da cidade. Felipe Ramón, subsecretário do Patrimônio Cultural do DF, afirma que o espaço foi concebido para promover valorização popular com especial interesse nas tradições do Nordeste. “Ceilândia é uma das cidades com maior influência nordestina no DF, por isso não é à toa que a Casa está ali. Foi pensada inicialmente como pouso de artistas que viriam para cá, mas se tornou muito mais do que isso”, explica.

De acordo com o Instituto de Pesquisa e Estatística do DF (IPEDF), mais de 640 mil nordestinos vivem na capital federal, com grande concentração justamente em Ceilândia, região administrativa mais populosa de Brasília, com quase 300 mil habitantes. Felipe ressalta, contudo, que a cultura regional preservada e propagada no local não se restringe ao público que veio do Nordeste. “A Casa do Cantador também escoa a cultura gerada pela própria comunidade ceilandense, que pode ter uma forte influência das manifestações nordestinas, mas também tem suas características próprias. O espaço virou um ponto para congregar diversos tipos de arte. Por isso que os eventos mais comuns são festas de forró, viola, baião, rastapé e afins, além de leitura de cordéis, mas várias outras coisas acontecem”, diz.

Foto: Rayra Paiva

Diversidade na veia

A personificação dessa diversidade está no rapper Marcos Vinícius de Jesus Morais, mais conhecido como Japão. Integrante do Viela 17 e parceiro de longa data de ícones do estilo, como o também brasiliense Genival Oliveira Gonçalves, o GOG, e MV Bill, Japão é o que se pode chamar de “ceilandense da gema”. Nascido em 1971, sua primeira lembrança da Casa do Cantador vem ainda dos anos 1980, pouco após a inauguração, quando costumava frequentar festas de forró junto do pai. Nos anos 1990, retornou ao local já como artista em ascensão e, em 2016, veio a consagração. Gravou o DVD 26 Anos do Rap Nacional no espaço, o que ele descreve como uma apoteose da sua carreira.

Sua relação com o local e a Ceilândia, em si, fizeram-no ter um olhar crítico sobre a situação. “Eu me lembro de ser um lugar sempre lotado na minha época de adolescente, mas isso foi se perdendo com o passar do tempo. Não adianta ter um espaço desse e não convidar as pessoas. Se deixar, o tempo corrói”, defende.

A Subsecretaria de Patrimônio do DF afirma que alguns eventos pedem ingressos voluntários para fomentar o trabalho dos artistas locais, mas a maioria dos acontecimentos é gratuito. Conforme a pasta, como não há exposições permanentes, a orientação é buscar as redes da secretaria de Cultura para saber a programação e horários de abertura do lugar.

Para Japão, esse acesso poderia ser liberado sempre e a comunidade poderia ser a verdadeira gestora do espaço. “Lá é um monumento idealizado por Niemeyer e muita gente nem sabe disso. Deveria ser uma casa de convivência aberta à comunidade, para as pessoas se sentirem pertencentes àquele lugar. Poderia estar em 100% de utilização. Deveria abrir mais aos fins de semana, ter convites especiais para a comunidade desfrutar desse espaço. É como ter ouro escondido em casa e não saber onde”, reivindica.

Professora do Departamento de Música da Universidade de Brasília (UnB), Beatriz Magalhães classifica a Casa do Cantador como um abrigo de histórias e vozes do Brasil. “A música é uma referência emocional para as pessoas. Há casos de pessoas com demência voltarem e ter emoções fortes por meio da música. Ela atinge áreas profundas na construção da personalidade das pessoas, então haver lugares para que se faça essa manifestação é muito importante. Congregar-se em cima de práticas culturais reforça a identidade de uma comunidade e ativa a memória afetiva das pessoas”, explica.

Para ela, aparelhos públicos acessíveis e de qualidade ainda são difíceis de se conseguir no Brasil, portanto lugares como a Casa merecem uma valorização. “Isso afeta até as pessoas a exercerem cidadania e terem sensação de pertencimento. A arquitetura do Niemeyer traz referências que precisam ser transmitidas para as próximas gerações, então a socialização é importante para a formação dos jovens”, conclui.