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Germe de um pensamento secular

Alguns autores, artistas, literatos e pensadores foram sagazes em suas percepções de mundo e apontaram para uma crítica tão reveladora sobre certos fenômenos vigentes em sua própria época, que talvez por terem sido compostas por um realismo tão extraordinário, deixam marcas de suas revelações que se perpetuam ao longo do tempo e ficam como importantes reflexões que se transpõem a gerações.

Como estes, Mandeville era um médico Holandês dedicado ao estudo das doenças mentais e já trabalhava com a escuta de seus pacientes dois séculos antes de Freud. Ele escreveu uma sátira humana interessantíssima, Fábula das Abelhas, em que criticava a moral vigente do final do século do XVII e, com isso, desvelava o sistema de valores embrionários de uma época pré-mercadológica, pré-burguesa, momento em que a sociedade estava começando a se organizar em termos civilizatórios, em que se estava fomentando um ideário liberal no qual não haviam ainda propriedades privadas, mas já se formavam os germes do liberalismo econômico.

A criação dos primeiros bancos da Inglaterra se faz nessa época, a ideia de créditos bancários, enfim toda uma massa burocrática de construção de uma sociedade civil estava se formando e todos os seus componentes faziam parte do diálogo que o autor estabelecia. A função da igreja também tem um valor importante nas propostas de políticas sociais da época, pois através desta passa-se pela primeira vez, pelo menos em território inglês, a organizar e querer controlar aquilo que as pessoas fazem de suas próprias vidas. Mandeville vai nos mostrar como as pessoas com um dinheiro excedente passam a investir seu capital nos vícios, nos excessos, no luxo.

Neste contexto, as vestimentas ganham aspectos importantes para a diferenciação das pessoas e das classes sociais. Enfim ele retrata de forma sagaz como as piores características do humano têm uma serventia muito bem adaptada e está a serviço do funcionamento dos ideais liberais que marcaram sua época. E nos deixa claro como se desenvolveu o momento da efervescência de uma ideia de progresso e como o furor das relações mercadológicas formaram a roda gigante da força do capital, que, segundo o autor, será movimentada pelo orgulho e pelo egoísmo.

Assim, é importante ressaltar que a sátira consegue nos mostrar a forma endógena como essas nossas características ruins darão vazão no social para que nos organizemos em termos civilizatórios. O filósofo não trabalha o tema de forma acusatória, mas nos coloca juntamente com todas as nossas características ruins, que não gostamos de reconhecer em nós mesmos enquanto seres humanos civilizados, como considerações importantes para o que é chamado de desenvolvimento.

Este foi um importante momento histórico, em que os sujeitos começaram a entender que poderiam se beneficiar do sistema de mercado germinal que começava a se estabelecer aqui, começavam a dar origem ao ideal de “ganhar mais trabalhando menos”.

Seus escritos eram distribuídos em forma de panfletos pelas ruas da Inglaterra do século XVI. Mandeville nos faz pensar, ainda hoje, como um sistema político relacional se instaura a partir de uma estratégia implícita ao seu funcionamento. É possível reconhecer nele como este sistema se reproduz a partir de características psíquicas singulares que criam na coletividade sujeitos que se tornam ao mesmo tempo produtos e produtores de sua condição no mundo.

O orgulho e o egoísmo são concebidos pelo pensador como um importante elemento para se entender as discussões contemporâneas sobre a revolução moral moderna e o egoísmo hodierno, que transforma o indivíduo numa a célula funcional da sociedade e não mais a família no sentido ancestral, como foi durante milênios, colocada como a célula mínima da construção da sociedade.

Ao longo do contexto histórico da política, da economia e da sociedade, podemos hoje arriscar dizer que o egoísmo parece ter ocupado o cerne da revolução moral na história. Os sujeitos hoje são gerenciadores de sua existências de forma individual, os ditos self-made-man, que cultuam tanto sua autoestima acima de tudo e que são os únicos responsáveis por seu sucesso particular, encarando sua própria vida como uma empresa a ser administrada, que, caso não transcorra bem, é por pura incompetência particular. E assim fomentamos os mercados dos 0800, da uberização das relações, em que os empregadores são pessoas com vínculos precários ou quase nenhum de responsabilidade em termos legais com seus profissionais, que, hoje, para comodidade das explorações, viraram “colaboradores” e não mais funcionários das empresas – mudança nominativa estratégica para precarização dos vínculos, não acham?

O egoísmo e os excessos das individualizações aparecem aí, vistos primeiramente num texto escrito há 316 anos, como germe da revolução moral que se vê no ápice das relações de trabalho e em muitas outras atualmente.

Diante disso, ficam as questões: será em Mandeville que encontraremos um dos embriões da crítica que até hoje colhemos sobre as formas de organização que sustentam os laços sociais e as formas de trocas de afetos nas sociedades neoliberais? Será que o egoísmo, apontado como atributo potente daquilo que mobiliza o social, tenha culminado num eucentrismo advindo do excesso de positividade do racionalismo, racionalismo esse que fomentou a perspectiva da autoestima do ser, numa preocupação exacerbada com a própria existência em detrimento do coletivo? As negligências no âmbito da coletividade incluem o mecanismo secular, detectado por Mandeville, de não querermos nem mesmo nos apropriar dos dejetos jorrados nos grandes entulhos ao redor de nós mesmos pela sociedade do consumo?

Como se pudéssemos ainda viver nas concepções de um fora e um dentro, tal como nos coloca Christian Dunker em seu livro Neoliberalismo como Forma de Sofrimento Psíquico, em sua teoria dos condomínios, como se esse muro que nos divide tivesse a capacidade de nos isolar uns dos outros e de tudo o que nos desagrada no mundo “externo” dos nossos próprios dejetos, que nos trazem sensações desagradáveis, para alimentar nossas fantasias de que todo o mal, inclusive mau cheiro, questão maravilhosamente tratada no filme Parasita, em que todo mal, especialmente mau cheiro, tem de estar bem longe de nós.

O filósofo Deny-Robert Dufour, professor da universidade de Paris VII, que trabalha o tema do capitalismo, seu foco principal são os processos simbólicos relevantes para a filosofia da linguagem, filosofia política, psicanálise e economia, aproxima a economia da filosofia e consegue costurar, por intermédio do pensamento filosófico, importantes reflexões sobre os rumos da sociedade liberal, nas quais ele colocará Mandeville ocupando um lugar muito importante no cerne de seus constructos teóricos.

Dufour tem uma série de livros sobre esses estudos e alguns deles já traduzidos para o portugues. Um deles é O Divino Mercado. Neste, Mandeville é trazido pelo autor como o filósofo médico das paixões da alma de seus pacientes, e Deny cita, para minha ótima surpresa, a constatação de que Mandeville foi um precursor do inconsciente Freudiano. Mandeville era especialista em doenças nervosas, como podemos ver, dois séculos antes de Freud, dizia que era capaz de aliviar seus pacientes fazendo-os falar, como já citamos aqui anteriormente.

Podemos ver que o especialista, assim como Freud, já trabalhava com uma escuta depurada de seus pacientes, em que colhia efeitos e significantes que, através dos sofrimentos individuais, já poderiam ser associados com um discurso advindo de um status quo da economia vigente da época. Deny-Robert Dufour afirma que, pelo exemplo da prostituta, fica claro como podemos perceber o fluxo em que essa máquina econômica social se edifica, e essa foi uma das impressionantes elucidações de Mandeville.

Vamos pensar na prostituta então. É evidente que ela se entrega ao vício, porém, não basta que o afirmemos, é preciso pensar no íntimo do que concerne seu trabalho, precisamos considerar que a prostituta procura agradar os clientes, e que, para tal, ela deva usar joias e vestidos bonitos. Portanto, terá de encomendar ao costureiro a confecção de belos trajes. E, é assim que o costureiro, antes pobre, pode ficar rico e mandar os filhos para a escola. E isso graças a quem? À prostituta. Por sua vez, o costureiro encomendará belos panos ao fornecedor de tecidos. Este, antes pobre, pode também ficar rico e mandar os filhos para a escola. E isso graças a quem? Mais uma vez e sempre à prostituta. O que bem confirma o adágio principal de Mandeville: “Os vícios privados fazem a virtude pública”.

Então, como toda fábula, ela encerra uma determinada moral. E a moral desta, no caso, afirma que – e cito aqui o princípio completo – “os vícios privados geram o benefício público e a virtude condena uma grande cidade à pobreza e à indigência”.

A tese central da obra de Mandeville parece clara, como coloca Deny: as atitudes, os caracteres e os comportamentos considerados moralmente repreensíveis em termos individuais (tais como o amor próprio, o egoísmo, a ganância, o gosto pelo luxo, um estilo de vida dispendioso, a libertinagem, a enganação…) estão, para a coletividade, na origem da prosperidade geral e favorecem o desenvolvimento das artes e da ciência. Nasce a antropologia liberal, com sua moral – muito imoral – inclusive! E que se vai se expressar na segunda conclusão da Fábula: “Tanto quanto possível sejam ávidos, egoístas e gastem em nome do prazer pessoal; assim, estarão fazendo o melhor possível pela prosperidade de sua nação e a felicidade de seus compatriotas”, que pode ser condensado em “é preciso dar vazão aos egoísmos”.

Reconhecemos hoje uma sociedade com menos estado interventor e ao mesmo tempo com sujeitos cada vez menos preocupados com o coletivo, que talvez encontre a justificativa para tal contemplada na condição egoísta detectada por Mandeville.

Assim como afirma Jean-Pierre Lebrun (psicanalista, médico com formação em Psiquiatria) em sua fala sobre Vícios privados, virtudes públicas: o desaparecimento do Estado não é algo novo, e as sociedades primitivas eram contra o Estado, elas não queriam o Estado, mas havia uma sensibilidade forte no coletivo, e hoje vivemos numa sociedade em que o estado desapareceu ou está sem consistência, e os indivíduos parecem que perderam o senso do coletivo.

As pessoas têm uma preocupação intensa com a própria existência, mas nem tanto com o coletivo. E essas questões nos fazem pensar onde e como foi se organizando o neoliberalismo. As pesquisas atuais sobre esse tema revelam que as origens do neoliberalismo estão no final da Idade Média, até lá, a sociedade considerava que ceder espaço ao indivíduo, ao sujeito na sua singularidade, era perigoso para o coletivo, pois esse coletivo criaria forças próprias. Então, foi necessário encontrar uma maneira de pensar as coisas que permitisse fazer violar esse pressuposto, e, hoje, principalmente no momento atual, parece que começamos a pensar que: “…foram os moralistas em vez dos economistas que começaram a pensar que a noção do interesse, da utilidade, por exemplo, era suficiente para o corpo social, pois, se houvesse confiança no interesse de alguém no singular, todos esses interesses se reagrupariam coletivamente, encontrariam espontaneamente uma reorganização que fizesse com que todo mundo ficasse melhor”. Somos então, desta maneira, testemunhas por reconhecer que foi assim que se colocou em prática o princípio do funcionamento neoliberal.

Quando pensamos na mão invisível de Adam Smith, é isso que testemunhamos, o fato de não haver necessidade de regulação, um ideal de que as coisas se organizam automaticamente para o bem-estar de todos e que o Estado então não deve ter mais muito interesse em se misturar, não precisa organizar, ao contrário, só é preciso que intervenha o menos possível e que se torne um administrador do bem coletivo. O laissez-faire é suficiente, as coisas se organizam automaticamente para o bem-estar de todos, essa é a doutrina do Neoliberalismo.

Então a genialidade do texto de Mandeville, a meu ver, como dito, é o fato de já constar no pensamento dele alguns dados das características psicológicas constitutivas da condição humana, que viriam a se condensar em certa genealogia do sujeito liberal e dos questionamentos sobre o Neoliberalismo hoje.
No livro de Adams Smith, A Riqueza das Nações, afirma-se que as relações sociais baseadas nos interesses, constituem vínculos mais efetivos do que quaisquer outros. Assim está escrito: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm por seu próprio interesse”.

Os seres humanos, nessa linha de raciocínio, tendem naturalmente a se mover por uma vantagem individual, e não por um sentimento abstrato de humanidade que busca promover a felicidade alheia. Daí podemos ver que, de maneira geral, o mercado é concebido como espaço de realização possível do bem-estar individual pela via de acumulação crescente de riqueza e de satisfação individual.

E é nesse sentido caminha a fábula das abelhas de Mandeville, os vícios privados, tais como ambição e egoísmo, é que corresponderão a benefícios públicos, na medida em que ligam intimamente o interesse que impulsiona cada indivíduo ao enriquecimento próprio e a um suposto progresso econômico das sociedades.

Para Adam Smith, pai da economia moderna, um fragmento do fruto originário do egoísmo é a fonte das economias de mercado. Pensando nessa afirmação de Adam Smith através de Mandeville, parece-me reconhecível um paralelo sobre esse dado, apesar de não estar afirmando que será de lá que Adam Smith tira tal reflexão.

Freud afirma que cada indivíduo vai buscar na vida a satisfação do seu interesse pessoal e a condição social dos distintos interesses dar-se-á a posteriori. No desenrolar desse contexto histórico, as análises das ações do indivíduo no coletivo ganhará mais substância mais tarde, com o advento da teoria utilitarista de Bentham e John Stuart Mill.

John Stuart Mill vai dizer que o homem busca comodidades e luxos com a menor quantidade de labor de trabalho e sacrifícios físicos com a qual estes podem ser obtidos, ou seja, na concepção do homo econômicos a vida vai se reduzir a operações de troca e rentabilidade numa proporção em que enquanto menos se trabalha e mais se ganha torna-se um ideal. Eis que Mandeville reaparece tanto tempo depois, não é mesmo? Pois foi ele que colocou o egoísmo como a moral vigente nas relações, como modo de produção econômica e política.

Gostaria de fechar este artigo, pensando então que desde Mandeville, até os dias atuais. Deixo de dica para o fim de semana a série White Lotus, quando já se passaram 316 anos após Mandeville, e os clamores sobre o egoísmo e o desejo humano não deixaram de fazer parte do cerne de uma crítica social que deixa seus rastros, restos, excessos e excedentes, e que, em muitos dos casos, como no do nosso País, esses excedentes se tratam de vidas, vidas que contam e vidas que não contam…

Estaríamos, neste momento, numa certa exortação da moral dos valores, imbuídos pela livre iniciativa do mundo neoliberal, numa pretensa autodeterminação individual, e um excesso de independência ao Estado, sem medirmos consequências? Teria algum Mandeville que ousaria nos ajudar trazendo-nos espelhos?

Aqui retorno a um trecho do livro de Dany-Robert Dufour: certa vez, num vilarejo, havia sete cegos e um guia que os acompanhava. Um dia, todos escutaram um forte estrondo. Os cegos insistiram para que o guia os ajudasse a sair e a se aproximar… da coisa. O primeiro tocou numa presa do elefante e disse: – “Cuidado, é uma arma de guerra, um sabre!”. O segundo tocou no rabo, dizendo: – “Não, é um objeto útil para o trabalho, uma corda!”. O terceiro tocou numa orelha e afirmou: – “Acalmem-se, amigos, é apenas um abanador!”. – “Ah, não!”, disse o quarto, que fora de encontro ao flanco do elefante, – “Estão nos cercando, é uma parede!”. – “Todos estão enganados”, afirmou o quinto, que acabara de tocar na tromba: – “É uma cobra enorme e se enroscou no meu braço!”. O sexto, que tocava numa das patas, caiu na risada: – “Ora, é uma árvore! Sinto o tronco e posso abraçá-lo!”. – “De jeito nenhum!”, entusiasmou-se o sétimo, – “Trata-se de terra boa, quente e úmida!”. Acabara de cair numa das imensas bostas do elefante. Então, atônitos, indagando ao guia. – “Será que enlouquecemos?”. Entretanto, este não lhes deu resposta… Era mudo, o coitado.

Pois bem, creio que as ciências do homem encontram-se hoje na situação desses cegos. Frente à mutação antropológica que ora se produz, afetando pro-fundamente o ser-em-si e o ser-em-conjunto, cada uma delas propõe seu douto veredicto em separado, esquecendo-se simplesmente do mais importante: nomear o todo, dizer com o que realmente lidamos. Na verdade, os cegos sábios têm nomes, chamam-se: “historiador”, “gramático”, “economista”, “psicanalista”, “sociólogo”, “teórico da arte”, “cientista político”… – tenho cá minhas idéias quanto àquele que chafurda na “merda” do elefante, mas isso fica por conta da imaginação de cada um. Um viva para a ciência!

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