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Ficção, virtualidade de si na atualidade

A tecnologia nos deu condição de reconstruir conceitos como longe e perto, junto e separado, verdades e impressões, imagens reais e pré-modelamentos de si

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Diante dos inúmeros questionamentos em tempos de reclusão, deparamo-nos com as diferentes maneiras de lidar com aquilo que tem nos afetado em nossas relações e os diferentes usos das ferramentas possíveis para lidar com tal problemática.

 

O novo ópio virtual propõe algumas saídas relacionais protéticas, que, por fim, podem agir como uma espécie de embriaguez performática, dependendo do quanto nos afeta deixarmos de sermos vistos, convocados e partícipes das vidas dos outros, vemos isso nas inúmeras lives e nos over posts que se proliferaram no início dos tempos de covid.

 

É certo que o distanciamento tenha nos obrigado a nos comunicar por diferentes meios, e a ferramenta virtual ameniza as dificuldades das restrições e nos coloca, assim, uma diferente maneira de nos presentificarmos no mundo exterior à nossa casa, mesmo que, às vezes, não tenhamos muitas razões para tal.

 

A tecnologia nos deu a condição de reconstruir conceitos como longe e perto, junto e separado, verdades e impressões, imagens reais e pré-modelamentos de si, dentre vários outros conceitos que ainda se incluem nesta lista.

 

Nesse deslocamento de lugar, de atuação social, o corpo passa a ocupar um território invisível do ponto de vista real. Em muitos dos casos, assim como o sujeito que sonha, ou que delira, por efeito de qualquer artifício psicoativo ou não, as novas formas de presentificação na ‘polis’ coloca as imagens de si a perambular na vida dos outros como um andróide idealizado, esculpido como um protótipo egóico, que é arquitetado por nossos fantasmas e assim virtualmente sai a passear pelo mundo para dizer ‘a que veio’, seja para si ou para o outro, vai saber?

 

Para a psicanálise, o EU surge de uma confluência da imagem unificada que a criança faz do próprio corpo, nessa operação se constrói o eu ideal, que resulta no narcisismo primário.

 

Lacan, no Seminário 1, afirma que para o ser humano é o Outro que vai dar consistência a essa imagem, pois será no Outro que o bebê reconhecerá a sua gestalt até ali inacessível. Esse acesso corresponde a uma antecipação de uma integração que ele ainda não experimenta no real.

 

As atuais formas de relações virtuais, para além desse trabalho lipoescultural de significantes e traços, coloca-nos questões sobre as ilhas de isolamentos coletivizados que nos impelem a uma falsa ilusão de companhia e de diversidade, mas que não passam de uma coletividade solitária. 

 

Esse novo formato nos faz pensar se não estaríamos revisitando nossos narcisismos primários, na tentativa de nos remodelarmos de forma “reparativa”, tal qual o procedimento de ‘harmonização facial’, muito usado pelos cirurgiões plásticos atualmente, em que se ‘preenche’ o rosto em locais específicos para dar formatos ditos ‘mais harmoniosos’ a protuberâncias, olheiras, rugas, narizes, ou seja, soluções liquidamente protéticas para atingirmos o suposto ‘ideal de si’ que dilui assim as nossas diferenças, que estão justo naquilo que se ressalta EM nós e DE nós perante os olhos dos outros.

 

Tal onda não deixa de apontar analogamente para o processo primitivo da nossa constituição subjetiva, revisitado com matrizes ideais do imperativo de determinadas estéticas. A forma sonhada é inacessível, mas sempre prometida como júbilo azeitado pelo desejo de se reformatar no olhar do outro.

 

Tal qual a missão do Dr. Robert Ledgard, interpretado por Antonio Banderas em A Pele que Habito, que tenta obsessivamente recriar em laboratório uma pele humana perfeita, como reparo daquilo que não se suporta ver de si no outro e do outro em si, uma ficção marcada por uma rachadura que é fundante e irreparável do ponto de vista psíquico.

 

Então pensemos juntos: qual seria a finalidade de tanta edição significante e imagética de si, já que a companhia que acaba por se conquistar é a do solipsismo?