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Esses 3 desfiles extasiantes marcaram a semana de Alta Costura

Pipoca em mãos? Confira as apresentações do Spring Couture 2023 que merecem replay

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Cabeças de leão, feras soltas, um safari de seda e espuma. Vestidos de tule suspensos no ar, firmes como prédios, caçoando da gravidade e da tradição. Corsets estruturados de acordo com a forma da água, saias e jaquetas protagonistas, interpretando violência através de espinhos. Modelos, celebridades, gente importante e gente de talento. **Um milhão de pupilas coladas na tela do celular**.

Como os sapatos vermelhos de Dorothy ou o cachimbo da lagarta de Alice, **a Alta Costura é uma viagem alucinógena**: venha, mas prepare os olhos para o que verá. Apresentada em Paris, a semana de moda _Haute Couture_ é um esperado espetáculo de absurdo e fantasia, no qual o vestir encena o papel da arte, se desliga da realidade e comove, como se fosse fábula. Encerrado na quinta-feira, 26, o evento contou com 19 apresentações das grifes mais nobres do mercado — destas, a coluna destaca 3 que, pelo bem ou pelo mal, conferiram ao Spring 2023 um caráter **cinematográfico**.
Luz, câmera, emoção.

**Anjos e demônios**

_“Se Doja Cat se cobre inteira de cristais vermelhos para assistir ao seu desfile e ainda assim não é o assunto mais comentado, você sabe que fez um bom desfile“_. Parafraseada e extensamente reproduzida, a frase usada para explicar o **Spring Couture 2023** da **Schiaparelli** não falha em acertar o ponto com precisão: nada, nem ninguém, seria capaz de desviar o olhar da passarela naquela manhã de segunda-feira.

Foram 32 looks ao todo. O décimo deu _start_ ao espanto. Sobre o peitoral da top **Shalom Harlow**, uma muito-convincente **cabeça de leopardo** desfilava a passo lento. O susto não dispôs tempo de respiro: no ombro de **Irina Shayk**, juba farta e dentes afiados formavam a imagem do **leão**. Quando o **lobo** chegou, transportado por _Naomi Campbell_, é de se imaginar que o público já encontrava-se em estado de anestesia.

![Apedrejada: foram necessários 30 mil cristais Swarovski e quase cinco horas para concluir a produção da cantora Doja Cat ](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9387_fdb2f088ce.JPG)

![Minuciosamente detalhadas, cabeças de animais criadas por Schiaparelli usam do estudo científico da anatomia para contar uma história que funde moda, religião e literatura](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9386_2a5187b33e.JPG)

Inspirado pelo **_Inferno_** de **Dante Alighieri**, Roseburry encontrou nas camadas do submundo um retrato da própria angústia. **_“A agonia de querer surpreender”_**, confessou à Vogue. Da cobrança pessoal à qual se submete como artista, tirou o fogo necessário para incandescer o _runway_. Se muniu de elementos da moda masculina — repensados em silhuetas mega-femininas — ombreiras exageradíssimas contrapostas a cinturas afinadas, vestidos-máscara que vezes escondiam (com pedrarias e metalizados), vezes emolduravam (com estruturas pontiagudas semelhantes a chifres) a face, transparências escandalosas e, acima de tudo, um **glamour inegável**. Nada mal para uma pacata _monday morning_.

![Inshalá: Schiaparelli utilizou de materiais como madrepérola e ouro 24K para construir seu Spring 2023 Couture](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9388_fc335b29f7.JPG)

As reproduções animalescas somavam uma mínima parcela da linha. Tinham intenção de simbolizar insígnias tiradas do próprio livro: a **luxúria** (leopardo), o **orgulho** (leão) e a **ganância** (lobo). E mesmo com tanto a se maravilhar, foi essa a parcela que ‘pegou’.

Na internet, o alvoroço nasceu de um discurso pseudo-ambientalista. _“Essas peças incentivam a caça de troféus e colocam um alvo na testa de espécies sob risco de extinção”_, foi a mensagem que se propagou. E, mesmo reiterando a produção **completamente artesanal** dos artefatos, **o sentido da coleção perdeu-se em meio a hashtags e gritos de um ativismo performático**.

Ao longo do dia, a ferida inflamou. Redes sociais ferviam em revolta. Quando **Ingrid Newkirk**, presidente da ONG de proteção aos animais **PETA**, se pronunciou, o ar já cheirava a cancelamento. _“Essas cabeças de animais fabulosamente inovadoras mostram que onde há vontade, há um caminho”_, apaziguou, validando o sucesso das peças em homenagear a beleza dos bichos. **Calou muita gente**.

![Além da polêmica: a linha ressignifica o maximalismo surrealista da marca, com menos opulência, mais volumes e um enfoque na forma](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9389_2c99a65071.JPG)

Num mundo em que o ‘soar bonito’ tem valor superior ao ‘fazer bonito’, mensagens provocantes falam mais alto que atitudes de boa índole. Atender a um discurso pré-estabelecido do que “pode e o que não pode“ coloca a experiência humana dentro de uma caixa, aniquila a diversidade enquanto prega por mudança.

O **politicamente correto é, sem dúvidas, legislativo**: terminante, abre pouco espaço para a **nuance** e o **pensamento crítico**. O choque, por sua vez, está banalizado, e arte de verdade é descartada como jogada de marketing. [Querem fazer igual à Balenciaga!”](https://gpslifetime.com.br/materia/encapsulado-7-momentos-de-moda-que-definiram-2022) a compraração imprecisa que muito se escuta.

Curioso, ainda, é o fato de essa ter sido a parte indigesta de uma apresentação que, sem cerimônias, toma liberdades religiosas enquanto faz referência ao inferno — um conceito que cristãos praticantes não costumam acatar com falicidade.

**Mas é da essência da arte gozar desse livre-arbítrio**. Passear por lugares de difícil acesso, provocar. _Foi desnecessário!”_. Talvez, mas quando se exige um sentido de funcionalidade para validar a arte, é quando ela se torna não mais que um produto, perde a beleza e morre. É essa a extinção que deve se temer.

_”É um lembrete de que **não existe céu sem inferno, não existe felicidade sem arrependimento, não existe o êxtase da criação sem a tortura da dúvida**”_, completou — e sem dúvidas, não será tão cedo esquecido.

**E o vento levou**

Tão elementar quanto _“quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?”_, a pergunta que a dupla de designers **Viktor & Rolf** pousa também tem natureza paradoxal: **_“quem usa quem, roupa ou indivíduo?”_**. Não mais que 19 looks foram suficientes para responder o questionamento — **e desafiar as leis da física**.

![Sugar and spice: desfile da marca Viktor & Rolf recorta a moda com doçura e acidez](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9411_b55b7aaa92.JPG)

Colorida e adocicada, **a primavera proposta pela grife engana**. Te compra com algodão-doce, tons pastéis, laços, tules, saias rodadas. Vende o sonho idílico do que tradicionalmente se entende por **Haute Couture**: metragens e metragens de frufrus e firulas. E tão súbito quanto o adeus de Scarlett a Tara, o mundo estava **de pernas para o ar**.

Vestidos antes ‘perfeitinhos’ se emaranhavam entre braços e pernas num bizarro jogo de ‘vista a boneca’, subvertendo o imaginário popular da **Alta Costura** com **a essência do caos contemporâneo**. _“Em que tipo de mundo vivemos? É absurdo”_, dispararam em entrevista à repórter Ellie Pithers. Ora, um mundo de constante alerta — guerra, pandemia, medo. Economia em colapso, terrorismo em alta. Um mundo que anda, literalmente, **de ponta-cabeça**.

Dessa abordagem sombria, surge **uma coleção que sorri**, tira sarro da sociedade e de si mesma.

![Bateu um vento: modelos causam espanto em vestidos entortados](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9407_c8db49b116.JPG)

Não bastasse o funesto comentário sobre **o colapso da organização social**, o duo também quis ‘pôr o dedo’ na relação do indivíduo com a **internet**. Ou melhor! A relação do indivíduo com seu ‘eu on-line’ e a **fetichização da imagem adulterada**.

Na facilidade com que se aumenta um lábio, diminui um quadril ou apaga uma espinha, o reino virtual se monta como um lugar de distorção, repuxado, coberto em edições e filtros. Feito de maneira tão tosca, por vezes, que deforma e deturpa o ser-humano, como partes **e peças que simplesmente não se encaixam**… soa familiar?

![Vazio existencial: comentário da grife joga olhar sobre a sociedade distorcida e a manipulação da imagem](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9406_30126dbe8a.JPG)

A discussão é atual, o tema é fresco, mas essa **não é a primeira vez que a casa toca a ideia de colapso** através de roupas que instigam o esfregar de olhos. Em, 2010, a primavera da _maison_ atacou a **recessão econômica dos Estados Unidos**, e os cortes de gastos promovido pelo americano médio foram traduzidos em cortes literais, com peças em ângulos extremos e recortes inusitados. **_Cutting Edge Couture_** é como a linha foi batizada, quase 15 anos depois, serve de ponto de partida para uma grife que adora se inspirar em si mesma.

![Flashback: um pouco do Spring 2010 de Viktor & Rolf](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9518_b65c936e01.JPG)

No meio do caminho, **Viktor & Rolf** esbarram, talvez involuntariamente, num discurso que circula o **feminismo** — quem diria!—, sustentado pela ideia de uma **mulher-boneca**, perfeita porque não fala, não mexe, não envelhece… **mas quebra**. Imaculada, mas **oca por dentro**. Pálida, é privada do controle sobre seu corpo, o que ele veste ou como veste. Inexpressiva e imóvel. Incolor e insipida. Quanta coisa pode ser tirada de um conceito objetivamente simples!

Apesar do subtom amargo, o brilhantismo de construção e o _know-how_ de espetáculo conferem ao evento uma aura doce e, indubitavelmente, memorável. **Tem coisas que nem o vento consegue levar.**

**Ligações Perigosas**

**Jean Paul Gaultier tem um _modus operandi_ peculiar**. Aposentado, o designer encontrou na arte da colaboração seu ‘jeitinho particular’ de se manter em alta: convida, em cada temporada de seu **_Haute Couture_**, um estilista diferente para assinar a coleção.

Glenn Martens (Diesel, Y/Project), Chitose Abe (Sacai) e Olivier Rousteing (Balmain) já assumiram o batente. Nesta primavera, coube ao veterano **Haider Ackermann** encarar a missão. Apreensivo e talvez um pouco desesperançoso, o francês não fugiu do holofote: ajustou a luz, fez a seu modo, e como brilhou!

![Dobradinha: francês Haider Ackermann é convidado para assinar linha da Jean Paul Gaultier](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9435_7793b0890b.JPG)

A linha trouxe **alfaiataria**, claro. O corte Gaultier é único, e no repertório de Ackermann, o _outerwear_ é o grande forte. A junção perigosamente potente dessas forças haveria de entregar, no mínimo, bons ternos. Entregou memoráveis.

Num perfeito **_bailar_ entre polaridades**, o estilista propôs equilíbrio e contraste num jogo de antagonismos e dicotomias. Masculino e feminino acharam solo comum em costumes de linhas rígidas, enternecidos por decorativos fabulosos como golas de plumas (que aparecem, ainda, em leitura agressiva imitando pontiagudos _spikes_) e tonalidades neon. Os cônicos _bustiers_ de Jean Paul ganharam interpretação ‘modernosa’, arquitetônica, homenageando sem copiar. A complexa cartela de cores despertava intriga. **Na primeira fila, Timothée Chalamet não conseguia conter o deslumbre**.

![](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9434_d77003c02c.JPG)

![Fluência e rigidez, ternura e agressividade: JPG trabalha o melhor dos dois mundos em linha cheia de contrastes](https://gpslifetime.blob.core.windows.net/medias/landing-page/IMG_9430_b0424f466e.JPG)

Talvez a maneira tão própria e sútil de fazer referência aos códigos da casa seja o mais interessante de assistir. Isso, e o fato de **nenhum look entregar o que se espera**.

Quando uma blusa de tule rosa é apresentada, instigando um flerte com o _‘girly’_, é logo compensada por formações quase alienígenas saindo de busto e ancas. Formatos arredondados resgatam um tempo áureo do _Couture_, de Givenchy e Cristóbal Balenciaga, coexistem com propostas mais relaxadas, que tiram inspiração do _athleisure_ e da moda de rua. Sem se contradizer ou se repetir, a linha valsa entre opostos com a graça de uma jovem Michelle Pfeiffer. Conquista, prende e fascina. **Uma pena que não veremos essa coligação novamente**.