Quebramos todas as regras para tornar os automóveis felizes – Jan Gehl
O primeiro bonde surgiu em 1807, nos Estados Unidos, na cidade de Nova York. Era um veículo sobre trilhos, mas puxado por cavalos, o que reduzia o atrito e permitia um deslocamento mais suave e rápido do que via carruagens comuns. O modelo se popularizou, e foi implantado em cidades na Europa e na América Latina, Rio de Janeiro inclusive.
Com o avanço da Revolução Industrial, surgiram bondes movidos a vapor, mais potentes e mais capazes de transportar um número maior de pessoas por viagem. Eram, no entanto, barulhentos e poluentes, o que limitava sua aceitação, principalmente em áreas residenciais das grandes cidades.
A grande revolução dos bondes veio, enfim, com a eletrificação. O primeiro bonde elétrico entrou em operação em 1881, em Berlim, na Alemanha, desenvolvido pelo engenheiro Werner von Siemens. O sistema utilizava trilhos condutores e um motor elétrico alimentado por uma linha aérea. Esse avanço possibilitou maior eficiência, redução da poluição e o crescimento das redes de transporte urbano. Em seguida, cidades ao redor do mundo, como Londres, Nova York e São Petersburgo, adotaram o modelo em maior escala, revolucionando o transporte urbano e impulsionando o desenvolvimento econômico.
Redes extensas de trilhos foram construídos, tornando-se a espinha dorsal da mobilidade – e da expansão – urbana.
No entanto, com o crescimento da indústria automobilística, o modelo de bonde foi gradualmente substituído por carros particulares e ônibus, especialmente nos Estados Unidos, quando a sociedade emergente passou a privilegiar o transporte individual. Muitas cidades desativaram suas linhas de bonde nas décadas de 1950 e 1960.
A década de 1970 começou com o desejo de explorar novos modos de transporte alternativo, o que levou à realização de um concurso, na França, que selecionou o modelo de bonde Standard – TFS como o veículo capaz de concretizar e simbolizar essa transformação. A partir de então, o governo francês iniciou um amplo programa de incentivo à construção de vias para “bondes modernos” nos centros históricos, com o objetivo específico de ressignificar os espaços públicos por meio do conceito de “urbanização induzida”. Foi o inicio da era dos “Veiculos Leves sobre Trilhos – VLTs”.
A urbanização induzida é um fenômeno controlado e planejado, que ocorre quando o crescimento urbano é impulsionado por fatores externos, como grandes projetos de infraestrutura, políticas governamentais, ou atividades econômicas específicas. Diferente da urbanização espontânea, que se dá de forma natural com o crescimento populacional e econômico das cidades, a urbanização induzida é planejada ou estimulada por intervenções humanas.
Os principais agentes causadores da urbanização induzida incluem grandes obras de infraestrutura, como rodovias, ferrovias, portos e aeroportos; a expansão industrial e econômica, com a instalação de fábricas e polos tecnológicos; políticas públicas voltadas à habitação, que incentivam a ocupação de novas áreas urbanas; além do turismo e de megaeventos, como a construção de vilas olímpicas.
A mobilidade urbana é uma das áreas que mais se beneficia dessa abordagem. Sistemas de transporte eficientes e sustentáveis – como os VLTs – ajudam a revitalizar áreas degradadas, conectando bairros periféricos a centros urbanos e promovendo o crescimento econômico e social. Esse tipo de infraestrutura estimula investimentos privados em comércio, habitação e serviços, valorizando as regiões próximas às novas estações e linhas de transporte. Com isso, novas empresas e novos moradores são atraídos para esses locais, promovendo seu desenvolvimento de maneira muito rápida e otimizada.
Além de favorecer a economia, a urbanização induzida pela mobilidade viabiliza a recuperação de espaços antes abandonados, como antigas zonas industriais e centros históricos. O turismo também se beneficia desse processo, especialmente em cidades que possuem um rico patrimônio cultural. A revitalização de prédios históricos e espaços culturais fortalece a identidade da cidade e resgata seu valor histórico e social.
A expansão de sistemas de transporte eficientes também reduz desigualdades sociais, conectando bairros periféricos a centros econômicos e facilitando o acesso a oportunidades de emprego e serviços essenciais. Com uma mobilidade acessível e bem planejada, a qualidade de vida melhora, garantindo que diferentes camadas da população possam usufruir dos benefícios do crescimento urbano. Além disso, o aumento da circulação de pessoas em determinadas regiões inibe atividades criminosas e contribui para a percepção de segurança.
O VLT, em particular, apresenta vantagens significativas em termos de impacto estrutural. Como opera sobre trilhos leves, não exige grandes obras subterrâneas ou viadutos, preservando fachadas históricas e calçamentos antigos. Seus trilhos podem ser integrados ao piso urbano sem grandes interferências, e seu design harmoniza-se bem com o ambiente histórico, tornando-se uma solução eficaz para o crescimento sustentável das cidades.
Brasília, desde sua concepção, é por si só um exemplo notável de urbanização induzida – em escala macro. A cidade foi planejada para promover o desenvolvimento do Centro-Oeste. Com o tempo, a capital passou por várias transformações impulsionadas por grandes investimentos em infraestrutura, sempre com o objetivo de ampliar seu papel como centro administrativo e, mais recentemente, como um polo de inovação e desenvolvimento econômico.
Outros exemplos de urbanização induzida na capital incluem a construção do Setor Noroeste, um bairro planejado com forte valorização imobiliária; o próprio Eixo Monumental, que com o tempo consolidou a vocação turística e a centralidade administrativa da cidade; e o Plano de Desenvolvimento Integrado do Entorno do DF, que busca integrar os municípios vizinhos a Brasília por meio de novas infraestruturas viárias e novos empreendimentos habitacionais.
A história nos ensina que as cidades mais bem-sucedidas são aquelas capazes de evoluir de acordo com as necessidades da sociedade moderna, sem comprometer sua identidade única. O processo de urbanização induzida, quando bem planejado, oferece uma oportunidade valiosa para revitalizar áreas urbanas, melhorar a mobilidade e promover o desenvolvimento econômico e social de forma sustentável.
Analisando os resultados referentes à aplicação deste conceito em cidades históricas, como Bordeaux, na França, Santiago, no Chile, Praga, na República Tcheca e Porto, em Portugal, podemos concluir que sim, é possível implementar sistemas de mobilidade modernos e integradores, respeitando as diretrizes de preservação e assegurando uma significativa melhoria na qualidade de vida dos moradores. Esses casos mostram que, com planejamento cuidadoso, a modernização pode coexistir harmoniosamente com a proteção do patrimônio, criando espaços urbanos mais inclusivos e vibrantes.
Brasília, como cidade planejada, tem a chance de consolidar um futuro mais conectado, inclusivo e harmonioso, alinhado com as melhores práticas de desenvolvimento urbano, sem perder de vista os valores que a tornaram única. Sempre temos a oportunidade de analisar, propor e repensar a cidade, que é um organismo vivo em constante evolução. A adaptação aos desafios contemporâneos, sem renunciar à preservação e da sustentabilidade, é o caminho para que a capital continue a ser um modelo de cidade inovadora no Brasil e no mundo.
*Duda Almeida é arquiteta e urbanista especializada em Desenho de Arquitetura Assistido por Computador pela UnB, com curso em Gestão de Projetos pela FGV e Mestre na área de concentração Urbanismo – Cidade e Habitação. Atualmente é sócia-proprietária do escritório Reis Arquitetura aqui na capital, mas já atuou como docente nas áreas de Teoria e História e Projeto de Arquitetura e Urbanismo e está se aventurando como autora de livros, tendo lançado recentemente a obra Desenho Urbano e Envelhecimento Populacional