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Duda Almeida: “nosso conjunto tombado: conceitos e transformações”

Brasília é o símbolo de um grande conjunto modernista, fruto de um traçado absolutamente inovador à época
Foto: JP Rodrigues

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Lucio Costa era um entusiasta, otimista, e profundo conhecedor do seu ofício para conceber um projeto intenso e original como o Plano Piloto de Brasilia: certamente ele pensava o quão vibrante a cidade deveria ser. Segundo suas próprias palavras, ao se pensar em um projeto urbano, o arquiteto deve possibilitar o impulso de vida na cidade, de uma concentração de pessoas que se beneficia com alterações sensíveis, cuidados na sua preservação e planejamento para uma expansão responsável.  

Ele era um sonhador, tão elegante que inicia o texto de seu memorial apresentado no concurso desculpando-se pela “espontaneidade original” de sua proposição, justificada pela vontade de desbravar e desenvolver a nação, e democratizar os espaços. Além da “localidade viva e aprazível” ele ainda torcia para que a cidade fosse capaz de se tornar, com o tempo, “um foco de cultura dos mais lúdicos e sensíveis do País”. Fica claro, por exemplo, que as superquadras são concebidas para reestruturar as relações coletivas de moradia e a relação entre os habitantes e os espaços urbanos – um lugar de passagem, de permanências e de encontros.

Brasília é o símbolo de um grande conjunto modernista, fruto de um traçado absolutamente inovador à época, com o claro propósito de representar uma nação em franco desenvolvimento, uma nação que vislumbrava um futuro de crescimento, de avanços da indústria – um futuro positivamente dependente da máquina, do automóvel, da tecnologia – símbolos máximos de um roteiro infalível rumo à prosperidade.  A nova capital seria projetada sobre os princípios máximos da Carta de Atenas, manifesto urbanístico resultante do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna de 1933 – o desenho da cidade derivado dos macrozoneamentos relacionados às atividades de trabalho, habitação e lazer; traduzidas aqui como usos cívico, cotidiano e gregário – as escalas. 

Foto: JP Rodrigues

Lucio Costa dizia, sobre o assunto das escalas: “… a chamada escala humana é coisa relativa. Um italiano da Renascença, por exemplo, se sentiria diminuído se a porta da sua casa tivesse menos que cinco metros de altura.” Daí se deriva o entendimento que a escala humana define também a futura volumetria espacial da cidade de Brasilia – Lucio Costa escreve, em carta ao então presidente do IPHAN, que ele gostaria que fosse entendida a importância da relação entre o verde das áreas a serem preservadas sem edificações – in natura – e o “branco” das áreas a serem edificadas.

A humanização está presente no plano original: os onze prédios de seis pavimentos, soltos do chão, permitem tanto que seja mantida uma proporção harmoniosa do conjunto construído em relação ao tamanho da superquadra quanto que o próprio morador, de dentro de seu apartamento, perceba melhor a vida ao seu redor, olhando pela janela e vislumbrando as árvores, os gramados, as pessoas transitando pelas calçadas. 

Costa divaga sobre o assunto das escalas de Brasília quatro anos depois da inauguração da cidade, em 1961, durante uma entrevista ao Jornal do Brasil, quando então ele explicita e amplifica o conceito das escalas: “… o que dá sentido a cidade é jogo de três escalas, afinal: a escala residencial, cotidiana; a escala monumental, quando o homem adquire a dimensão coletiva, a expressão urbanística deste novo tipo de nobreza. E finalmente, a escala gregária, onde as dimensões e espaços são deliberadamente reduzidos, e concentrados, a fim de criar o clima propício ao agrupamento. Podemos ainda acrescentar uma quarta escala, a bucólica, das área abertas e destinadas a fins de semana lacustres ou campestres.”  

Brasilia foi tombada em 1987, mas a legislação que protege o patrimônio histórico só entra em vigor em 1989. A área urbana tombada compreende 112.25 km², e a delimitação do seu perímetro protege as quatro escalas urbanísticas características do projeto original do Plano Piloto de 1957 de autoria de Lucio Costa. Além da proteção distrital e federal, Brasília conta com a chancela de proteção da Unesco reconhecendo a cidade como Patrimônio Cultural da Humanidade, com base no conceito de que se trata da única capital do mundo totalmente projetada e construída de acordo com os ideais modernistas. 

Foto: JP Rodrigues

O Plano Urbanístico é tombado, mas não seus edifícios; à exceção de alguns palácios no eixo monumental, da Catedral e da estação rodoviária que são preservados integralmente em suas características arquitetônicas, todo o resto é passível de demolição desde que as futuras edificações obedeçam aos parâmetros de ocupação originais que foram reafirmados no tombamento.

O tombamento tem uma abrangência sobre uma grande e diversificada área urbana, o que dificulta bastante os entendimentos em relação às suas orientações. Ao mesmo tempo é preservada uma estrutura urbana em constante movimentação, o que também provoca enormes polêmicas e grandes paixões. 

Importante lembrar que esse tombamento ocorreu com a cidade ainda em formação, o que por vezes provoca teses enganosas acerca da sua renovação construtiva e do contínuo desenvolvimento pelo qual todas as cidades naturalmente sofrem. A cidade viva e aprazível de Lucio Costa passa, em seu tombamento, primeiramente pelas escalas construídas e solidificadas pelos candangos, e depois pelos seus habitantes. 

Lucio Costa passou um grande período sem visitar sua obra, durante os anos de ditadura militar. Em 1987, veio novamente à cidade e elaborou um relatório de avaliação do que viu. Falou sobre o futuro da cidade: “É exatamente na concomitância destas duas contingências que reside a peculiaridade do momento crucial que Brasília hoje atravessa: de um lado, como crescer assegurando a permanência do testemunho da proposta original; de outro, como preservá-la sem cortar o impulso vital inerente a uma cidade tão jovem. Brasília merece respeito. É preciso acabar com esse jogo de “gosto-não-gosto”, e com essa balda intelectual de fazer frases pejorativas. O que é preciso agora é compreendê-la. Trata-se de uma cidade não concluída e, como tal, necessitada de muita coisa.

Saber o que devemos preservar e o que podemos mudar faz parte desta dinâmica da cidade como organismo vivo que herdamos; a coexistência, lado a lado, do ambiente construído e dos verdes, da natureza – como o próprio Lucio Costa falava. Entender que os vazios urbanos existentes entre os espaços presentes nas escalas da nossa cidade podem e devem ser apropriados; porque estes espaços são locais de vivência e vão além do planejamento urbano e das teorias da arquitetura. Ampliar o leque de possibilidades também contribui para a dinâmica do jogo, o jogo das três escalas – novos programas, novos usos e novas funções para o espaço urbano. 

Preservar o Plano Piloto implica em compreender que a cidade deve ser completada sob os mesmos critérios que guiaram sua implementação, porém com a lente dos novos tempos, sob regras de uma nova sociedade. A certeza de que a história modifica continuamente as cidades é a certeza de que todos nós temos o direito à uma vida urbana equilibrada – transformada e renovada, sempre. 

 

*Duda Almeida é arquiteta e urbanista especializada em Desenho de Arquitetura Assistido por Computador pela UnB, com curso em Gestão de Projetos pela FGV e Mestre na área de concentração Urbanismo – Cidade e Habitação. Atualmente é sócia-proprietária do escritório Reis Arquitetura aqui na capital, mas já atuou como docente nas áreas de Teoria e História e Projeto de Arquitetura e Urbanismo e está se aventurando como autora de livros, tendo lançado recentemente a obra Desenho Urbano e Envelhecimento Populacional