Recentemente, vendo TV, um programa sobre os novos restaurantes em Copenhagen me chamou atenção. Existe um movimento interessante por lá, que valoriza o uso de ingredientes locais e tradicionais da culinária dinamarquesa, em interação com técnicas de cocção ancestrais, típicas da região; isto aliado a detalhes minuciosos, também muito fiéis à tradição nórdica, que envolvem até o jeito que se apresentam, à mesa, os pratos principais de uma refeição.
Um dos chefs descreveu, na entrevista, o que ele acreditava ser o dom maior da culinária que ele praticava: a integração dos vizinhos e a sua possível contribuição individual para a sociedade. Ele achava que, utilizando produtos frescos, locais, aliados a um preço justo e a maior disponibilidade possível de horário e serviços, ele estaria promovendo a valorização da cultura local e fazendo girar uma roda produtores-consumo que estimularia a microeconomia ao seu redor. A própria vizinhança, ao tomar conhecimento disto, entenderia que se tratava de algo muito típico, caro à memória afetiva de maneira geral, e assim ele contribuiria para o fortalecimento do senso de comunidade do bairro; ou seja, ele estaria trabalhando também pela coletividade, utilizando seu conhecimento de maneira abrangente e integrativa; e isso permitiria o fortalecimento da cultura e das redes sociais na sua cidade.
É isso: ele estava pensando na coletividade.
As cidades são os maiores laboratórios sociais que existem – porque são as mais bem sucedidas expressões da capacidade do homem de se organizar em um grupamento ordenado e característico de um tipo de população e de suas instituições. É um produto da natureza humana – deriva dela e opera por ela. Esta definição parte da chamada “Escola de Chicago”, uma organização de professores e pesquisadores, que nos anos 1920 discutia soluções concretas para o então aparentemente caótico agrupamento de municípios gerado pelo processo de industrialização, pelo crescimento demográfico e pela intensa urbanização. Já era uma preocupação melhorar o meio urbano através da observação dos fenômenos sociais, fortalecendo o senso de comunidade, certo? Sim, a delimitação física da cidade não importaria tanto; o que importa é o caráter da vida social adaptado a uma forma urbana.
No Brasil, esta abordagem socioespacial começa a ser legalmente formalizada a partir da Constituição de 1988, quando foram adotados conceitos de gestão democrática das cidades, ao se promover mecanismos como como Orçamentos Participativos e Conselhos Setoriais. Desde então, falando de maneira mais simplista, evoluímos para um modelo mais concreto de parceria entre os setores público e privado, visando a valorização dos espaços urbanos. A pauta dos governos locais abriu espaço para a incorporação de movimentos populares; e os interesses privados também foram incorporados na agenda pública – ambas ações visando a integração e a democratização da gestão e governança nas cidades brasileiras. Com isso, vieram também novas possibilidades de investimento.
Uma parte do que possibilita que este processo seja integrado desta maneira se chama “geração de capital social”. O “capital social” é um conceito já bastante conhecido na sociologia, pois define aspectos que reforçam a importância das conexões e do reconhecimento social para o êxito econômico. Em resumo, seria uma das conformações que dão início a parcerias bem-sucedidas para toda população, baseadas, entre outras coisas, no conceito do civismo e na coletividade – ações que, por fim, gerariam melhoras no ambiente social, econômico e ambiental de uma rua, bairro, setor, ou de uma cidade. Estas ações caminham entre o publico e o privado, através da troca de conhecimentos, dos incentivos e processos sociais e através de fatores econômicos.
O capital social assume várias formas – uma delas são os níveis de conectividade entre os indivíduos de determinada área urbana. A conectividade tem a ver com elos, com formação das preferências, aspirações e objetivos de um determinado grupo, bem como as escolhas sobre as prioridades dos espaços de convivência de determinada sociedade. Uma parte da conexão é explicada pelos laços de amizade – friending bias — que são moldados através da estrutura dos grupos aos quais pertencem as pessoas, já que estas tendem a se relacionar com pessoas mais parecidas com elas. A fim de se promover maior ou menor interação entre classes sociais, o planejamento urbano frequentemente se utiliza de dados que podem reestruturar espaços comuns, para promover maior interação entre classes sociais e diferentes grupos.
O capital social está relacionado à confiança, reciprocidade e solidariedade entre as pessoas. Um dos pilares que sustentam esta confiança é a percepção de que outros indivíduos partilham os nossos interesses. A mentalidade “cada um pensa no seu quintal” é o pior cenário para a criação de espaços de colaboração e melhoria do ambiente urbano. A compreensão de que a valorização da confiança e a ampla colaboração geram um grande estímulo individual e potencializam a capacidade de um grupo para enfrentar desafios comuns, desde os mais simples aos mais complexos, é um instrumento que fortalece os níveis de conectividade e melhora o ambiente em que vivemos de uma maneira muito forte.
A população deve se sentir estimulada de maneira espontânea a criar e participar de projetos que reflitam diretamente sobre seus interesses cotidianos, além, claro, de se sentir integrante dos movimentos sociais urbanos e das administrações locais, na forma de participação popular. Isso dependeria de cada um, da iniciativa que se poderia ter ali, na esfera imediata da vida que se leva dentro de determinado espaço da cidade, repensado, individualmente, de maneira a favorecer o coletivo.
Assim como o chef dinamarquês, temos que entender a reciprocidade aplicada aos espaços comuns da nossa cidade: quando cuidamos e promovemos a coletividade, todos ganham de forma democrática. Geramos e gerimos o capital social, que é uma arma poderosa, inclusive politicamente falando. Além das portas das nossas casas e dos nossos comércios, escritórios, hospitais, autarquias, existe um espaço caracterizado pela ocupação, cultura e tradição, que é construído por todos nós, todos os dias.
O capital social gerado a partir da iniciativa de um individuo tem uma força e um protagonismo enorme dentro de qualquer cultura – o que dizer de uma cultura rica, alegre e pautada em laços de amizade e de solidariedade como a cultura brasileira? A transformação dos espaços públicos, por exemplo, tem muito mais efetividade quando conduzida por quem sabe expressar a sua necessidade imediata. Diferentes formas de intervenção em alguns espaços podem tratar questões sociais ou até reativar a economia local. Renovação, requalificação, revitalização, reabilitação urbana, seja lá o nome que se dê, tudo são contribuições que resultam em mudanças de uma área urbana, transformando nosso dia a dia e regenerando nossas cidades.