GPS Brasília comscore

Duda Almeida: a formação familiar e a origem das cidades

Como a estrutura familiar afeta a formação dos núcleos urbanos

“O mundo não vive a catástrofe, só volta à desordem.” Essa frase reflete bem o que se aprende ao ler O Mundo: Uma História Através das Famílias, do escritor, jornalista e historiador britânico de origem judaica Simon Sebag Montefiore. Dentro da análise apresentada no livro, ao focarmos no tema dos núcleos urbanos, fica claro que a formação das cidades não foi movida apenas pela necessidade de organização para o comércio e a defesa militar.

Esta formação também foi impulsionada por interesses políticos e econômicos, frequentemente associados à violência, às guerras e ao uso intensivo e cruel de trabalho escravizado — com os núcleos familiares sendo tanto os principais agentes provocadores e beneficiários quanto, paradoxalmente, as maiores vítimas desse processo. Além disso, fatores religiosos e sociais desempenharam um papel essencial nesse cenário, contribuindo decisivamente para a consolidação das primeiras estruturas urbanas e a organização dos grupos humanos em sociedades cada vez mais complexas e permanentes.

Os primeiros assentamentos surgiram como forma de facilitar atividades coletivas essenciais, como o cultivo do solo, a domesticação de animais para a pecuária e a fabricação de objetos de pedra, cerâmica e outros utensílios. Essas vilas neolíticas começaram a se formar há cerca de 12.000 anos, e suas populações foram crescendo rapidamente, ocupando territórios cada vez maiores. Esse processo de expansão exigiu avanços significativos, tanto na ferramentaria quanto na organização social e na infraestrutura, ainda que de forma rudimentar. Nesse contexto, as primeiras cidades começaram a emergir na Mesopotâmia, ao redor do Rio Eufrates, por volta de 3500 a.C., marcando o início de uma nova era na História.

Com o crescimento populacional, as atividades humanas se tornaram mais complexas, e as cidades acompanharam essa evolução. O poder político e social passou a se concentrar em líderes ou governantes, que frequentemente se autointitulavam figuras divinas e intocáveis, até que uma nova dinastia surgisse e impusesse uma nova ordem. Nesse contexto, as estruturas urbanas assumiram um caráter cada vez mais militarizado, refletindo a centralização do poder e a necessidade de defesa e controle sobre a população crescente.

Povoados e castelos foram cercados por muralhas robustas, construídas para garantir proteção e exercer controle sobre o território. A demonstração de domínio e autoridade também se refletia na monumentalidade das edificações. Pirâmides, palácios e templos, imponentes em escala e design, serviam como símbolos de poder religioso e administrativo, projetando força e intimidação tanto para os habitantes quanto para os inimigos.

A maioria das cidades tinha então populações modestas, geralmente com menos de dez mil habitantes, e ocupavam áreas inferiores a 1 km². No entanto, algumas exceções se destacavam por seu tamanho populacional e territorial. Atenas, em seu apogeu, abrigava entre 150 e 300 mil pessoas em uma área de aproximadamente 10 km². Roma, no auge do Império Romano, nos séculos I e II, alcançou mais de um milhão de habitantes, sendo amplamente considerada a primeira (e por muito tempo única) cidade a atingir essa marca antes da Revolução Industrial. Teotihuacán, no México, alcançou uma população estimada entre 100 e 200 mil habitantes no auge de seu desenvolvimento, por volta de 500 d.C. Já Tenochtitlán, a capital dos astecas, construída sobre o Lago Texcoco, impressionava por sua engenharia avançada e chegou a abrigar cerca de 200 mil pessoas antes da chegada dos colonizadores espanhóis.

O poder das famílias nesse processo de crescimento e organização urbana é inegável. Como aponta Montefiore, “os políticos perceberam então que o núcleo familiar tem um poder sagrado. A família sempre representa a sociedade em que está inserida, refletindo sua moral, sua economia e seu trabalho”. Nesse contexto, mulheres e crianças eram frequentemente vistas como peças invisíveis no jogo do poder. No entanto, na narrativa da história das famílias, elas nunca deixaram de ser protagonistas essenciais, desempenhando papéis cruciais, muitas vezes silenciados, mas determinantes na formação das estruturas sociais e urbanas.

Embora muitas vezes ditados e financiados pelas famílias dominantes, os processos de planejamento urbano sempre contaram, em maior ou menor grau, com a participação popular. Em tempos remotos, isso ocorria por meio de conselhos, proclamas, editos, rituais e cerimônias – movimentos de protesto e reivindicação; em contextos mais democráticos, manifesta-se através de audiências públicas e consultas comunitárias. Essa participação é fundamental para assegurar que as políticas urbanas reflitam as realidades, necessidades e aspirações dos moradores.

A Arquitetura e o Urbanismo, por sua natureza interdisciplinar, são matérias intimamente ligadas a diversas outras áreas do conhecimento, incluindo a Sociologia. Do ponto de vista sociológico, as famílias desempenham um papel essencial na construção do capital social, pois são as unidades fundamentais que sustentam e fortalecem as comunidades. Elas promovem redes de solidariedade e interação, criando um senso de pertencimento e coesão nos espaços urbanos. Esse aspecto se torna especialmente relevante em áreas urbanas vulneráveis, onde a organização comunitária liderada pelas famílias pode ser um motor para melhorias locais, como a promoção da segurança, o aprimoramento da infraestrutura e a construção de uma convivência mais harmoniosa e pacífica entre os moradores.

Além disso, a diversidade das estruturas familiares — como famílias nucleares, monoparentais ou ampliadas — reflete a pluralidade social das cidades. Reconhecer essa diversidade é essencial para criar políticas públicas urbanas que atendam às necessidades de todos os tipos de famílias.

Os regimes totalitários frequentemente impõem desafios significativos ao urbanismo, priorizando projetos que atendam a interesses políticos e ideológicos em detrimento das necessidades reais da população. Nessas condições, as famílias enfrentam dificuldades para exercer seu papel transformador – mas, por outro lado, também tem a possibilidade de emergir, como grupo social, como agentes de resistência e mudança em meio às limitações impostas pelo regime.

Na antiga União Soviética, por exemplo, o uso de espaços privados, como apartamentos comunais, permitiu a preservação de tradições culturais e a organização de encontros clandestinos. Na América Latina, durante ditaduras militares, famílias lideraram movimentos por moradia e urbanização de favelas, criando soluções locais para problemas estruturais.

O que se vê quando analisamos exemplos históricos, presentes na obra de Montefiore, é que mesmo sob essas condições adversas, as famílias continuam a desempenhar um papel fundamental na manutenção da coesão social. Elas criam redes informais de apoio e resistência, que muitas vezes são invisíveis aos olhos do regime, mas que sustentam a sobrevivência e o bem-estar das comunidades. Sendo assim, entendemos o papel crucial dos núcleos familiares no formação das cidades, pois suas necessidades e preferências influenciam diretamente o planejamento e o desenvolvimento dos locais escolhidos para se fixar uma determinada aglomeração urbana. Ao escolher onde viver, as famílias impactam diretamente a demanda por habitação, infraestrutura e serviços públicos, como escolas, parques e transporte. Além disso, a configuração dos bairros é muitas vezes moldada pela dinâmica familiar, que busca ambientes seguros e acessíveis.

Hoje em dia, o conceito de cidades compactas, por exemplo, que prioriza a proximidade entre moradia, trabalho e lazer, surge como uma resposta à busca das famílias por qualidade de vida. Essa abordagem não apenas reduz deslocamentos, mas também favorece a coesão social, fortalecendo os laços entre os moradores.

Montefiore nos convida a enxergar a história das cidades como a história das famílias — com suas contradições, conflitos e conquistas. Seja nos primórdios dos assentamentos neolíticos, nas cidades fortificadas da Antiguidade, ou nos bairros urbanos contemporâneos, o papel das famílias transcende o âmbito privado, influenciando decisões públicas, moldando espaços e redefinindo valores. Sob a perspectiva do urbanismo e da sociologia, as famílias são muito mais do que beneficiárias do desenvolvimento urbano: elas são peças-chave para a construção de cidades sustentáveis, integradas e socialmente justas.

O mundo, portanto, não vive uma catástrofe absoluta, mas retorna constantemente à desordem. Nesse processo cíclico, as famílias continuam a ser o núcleo vital que impulsiona tanto a resiliência quanto a reinvenção das cidades, provando que o futuro urbano está profundamente enraizado nas necessidades, lutas e aspirações humanas mais essenciais.

Duda Almeida: a formação familiar e a origem das cidades

*Duda Almeida é arquiteta e urbanista especializada em Desenho de Arquitetura Assistido por Computador pela UnB, com curso em Gestão de Projetos pela FGV e Mestre na área de concentração Urbanismo – Cidade e Habitação. Atualmente é sócia-proprietária do escritório Reis Arquitetura aqui na capital, mas já atuou como docente nas áreas de Teoria e História e Projeto de Arquitetura e Urbanismo e está se aventurando como autora de livros, tendo lançado recentemente a obra Desenho Urbano e Envelhecimento Populacional

Veja também

O movimento teve início na moda e, hoje, está refletido …

Sistema vascular pode ser afetado pelo calor e agravar varizes

GPS Brasília é um portal de notícias completo, com cobertura dos assuntos mais relevantes, reportagens especiais, entrevistas exclusivas e interação com a audiência e com uma atenção especial para os interesses de Brasília.

Edição 41

Siga o GPS

Newsletter

@2024 – Todos os direitos reservados.

Site por: Código 1 TI