Estou de férias, mas a coluna não. Escrevi essa crônica em trânsito, dentro do avião, de Veneza para Istambul. Vamos lá: todo santo dia, no consultório, alguém me olha nos olhos com a seriedade de quem confessa adultério: “Doutor, como faço para manter a dieta nas férias?”
É difícil responder essa pergunta. Sobretudo, porque não sou agente de viagens para conhecer as peculiaridades de todos os destinos, tampouco como será a rotina (ou falta dela) do meu paciente durante o recesso. Posso quase que como um ocultista predizer possibilidades. Para mim mesmo, quando estou em périplos turísticos, tenho uma dificuldade enorme para encontrar soluções saudáveis aos desafios culinários e etílicos que enfrentarei.
As calorias são nossas bagagens de mãos.
O questionamento carrega uma culpa que não é só alimentar. É quase teológica. Porque férias, meus caros e minhas caras, são a suspensão da ordem considerando a liturgia da exceção. É quando o sujeito que pesa as folhas de alface em Brasília se joga em Lisboa nos pastéis de nata como quem se atira nos braços de um amante.
O problema é que o corpo não tira férias. O metabolismo não carimba passaporte, não entende o fuso horário tampouco a aurora boreal. Ele segue lá, impassível, contabilizando calorias, ajustando glicemias, modulando grelina e leptina.
Estudos de coorte com viajantes apontam aumento de 20% a 30% no aporte energético diário em viagens longas, especialmente pela tríade diabólica: álcool, refeições fora de casa e redução do tempo de sono. A quebra de rotina alimentar e de sono ativa mecanismos hormonais de fome e saciedade que nos tornam mais vulneráveis ao ganho de peso e ao consumo de ultraprocessados.
Em período de festas/férias, a ingestão de 35% mais gordura saturada do que em seu consumo habitual. O excesso calórico episódico, portanto, pode gerar ganho de até dois a três quilos em viagens de dez dias, sobretudo quando associado ao aumento do consumo de álcool e ao sedentarismo da beira da piscina.
Não é precipício, mas é previsível. Afinal, a queda não começa no avião e sim no embarque. No voo doméstico, o sujeito se sente no direito de devorar uma caixa inteira de biscoito recheado “porque afinal estou de férias”.
Dentro do Brasil, o roteiro de férias é sempre uma orgia de livros de receitas com afetos. Em Minas, tropeiros e doces de leite. No Nordeste, baião-de-dois, moquecas e acarajés. No Sul, churrasco até que a alma peça penico. O risco aqui não é a novidade, mas a abundância. O corpo, acostumado à rotina espartana da marmita de escritório, é atirado num banquete permanente. Lembre-se, como profetizou Nelson Rodrigues: “toda nudez será castigada”. Eu atualizo, inclusive, a nudez da gula.
Já fora do país, a tentação é mais sofisticada. O brasileiro, ao se deparar com o hambúrguer novaiorquino ou com a pizza napolitana, acredita estar diante de uma obra de arte comestível. O que a ciência vê, porém, é a combinação adiposa de farinhas refinadas, açúcares e gorduras saturadas, elementos que ativam os mesmos circuitos de recompensa cerebral que drogas psicoativas leves. Traduzindo: férias internacionais são, muitas vezes, um laboratório de dopamina à mesa.
No voo internacional, Paris, Roma ou Genebra, a cena é ainda mais dramática: champanhe às 09h da manhã, seguido de massa gordurosa às 14h e chocolate ao leite da Suíça às 22h, porque o relógio interno enlouqueceu e qualquer racionalidade dietética foi engavetada no raio-x da alfândega.
E, como na tragédia grega, a indulgência de hoje é o remorso de amanhã. Ao voltar, o indivíduo se pesa, encontra alguns quilos a mais, e corre para a fraude do “detox”, esse purgatório da modernidade.
Inclusive, abro aqui breve observação sobre “detox”:
Não existe evidência científica convincente de que “detox” acelere a eliminação de toxinas. O corpo já faz isso via fígado, rins e intestino. Abordagens exclusivamente com sucos, sem fibras, podem desorganizar a microbiota e sinalizar vias pró-inflamatórias. Não confunda preparo intestinal clínico, como para o exame de colonoscopia, com “enematerapia” ou “limpeza do intestino” ou algo similar de apelo comercial, isto é teatro barato de charlatão.
Não pensem que escrevo aqui como um moralista de balança na mão. Sou, antes de tudo, um cronista da saúde e nutrição. O corpo humano tolera deslizes e adapta-se a excessos pontuais. O problema está na falta de estratégia. Pois bem, a ciência sugere caminhos concretos:
- Jejum compensatório inteligente: não é para morrer de fome, mas ajustar horários. Pular uma refeição eventual em viagens, desde que sem exagero, ajuda a modular o balanço energético.
- Exercício como antídoto: caminhar de dez a quinze mil passos por dia em roteiros urbanos reduz o impacto do excesso alimentar, segundo dados de acelerometria em viajantes.
- Álcool com parcimônia: o vinho francês pode até ser “resveratrol em taça” (mentira!), de outra parte, mais de três taças por noite será a decolagem dos triglicerídeos.
- Proteína como âncora: inserir proteína magra nas refeições reduz o apetite e ajuda a preservar massa muscular durante viagens.
Ainda assim, depois de toda recomendação científica, há que admitir o óbvio: férias não foram feitas para contar calorias. Foram feitas para escrever histórias.
O que proponho, meus caros e caras, não é a abstinência neurótica, mas o equilíbrio possível. Que se permita a empanada argentina, mas talvez sem o refrigerante açucarado que a acompanha. Que se coma a moqueca baiana, mas que se cruze a praia nadando em vez de cochilar na espreguiçadeira.
Eu asseguro, toda família feliz é infiel à dieta durante as férias. E não há problema nisso. Porque, ao final, a saúde se constrói no cotidiano e não no roteiro turístico, a não ser que o destino seja um spa.
A ciência, essa espectadora cartesiana, observa de camarote, registra em gráficos e meta-análises o que no fundo já sabemos; todo excesso cobra pedágio, afinal, não existe alfândega para o metabolismo.
Eis a verdade cruel! O que sobra, depois do tim tim? A ressaca. O fígado protesta. O jeans não fecha. O adipômetro denuncia. A cintura perde o rebolado. Nesse instante percebemos que cada gole foi um solilóquio do corpo.
Entendam: há o desejo, há a culpa, há o gozo e há o remorso. A vida precisa de harmonizações, e tenhamos presente que a vida do brasileiro é uma ópera tropical que se balanceia entre a cervejinha gelada e a salada negligenciada.
E quando, de volta ao consultório, o paciente me perguntar de novo (e de novo em um eterno looping):
“Doutor, como faço para manter a dieta nas férias?”
Eu responderei enigmático:
“Coma com ciência e peque com consciência. Regozije com a tequila mexicana, mas não a transforme em dogma. Registre a seguinte nota mental: na vida, bem como na mesa, o verdadeiro pecado não é o prazer, e sim a repetição da maldição sem arrependimento”.
Alimentação saudável é força e proteção. Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.