O Distrito Federal registrou, em 2024, o maior índice proporcional de afastamentos do trabalho por transtornos mentais no Brasil. Foram 14.049 licenças médicas, sendo 5.380 por ansiedade e 3.354 por depressão, segundo o Ministério da Previdência Social. O crescimento foi de 82,7% em apenas um ano, colocando a capital à frente de estados como Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O dado, divulgado em meio ao Setembro Amarelo, chama atenção para a urgência de discutir saúde mental no ambiente de trabalho.
Em todo o País, os afastamentos chegaram a 472 mil, alta de 68% em relação a 2023. O levantamento mostra que ansiedade, depressão e burnout estão entre os transtornos mais recorrentes, com impacto direto na produtividade e no bem-estar da população economicamente ativa.
No caso de Brasília, o perfil do mercado de trabalho ajuda a explicar o cenário. A alta concentração de servidores públicos, a formalidade das relações, a burocracia e a forte cobrança por desempenho estão entre os fatores críticos. Somam-se cargas horárias elevadas, assédio moral, conflitos interpessoais e a desigualdade entre concursados, terceirizados e autônomos.
A psicologia do trabalho mostra que ambientes com baixa autonomia, alta exigência e pouco reconhecimento são terreno fértil para o adoecimento mental. No Distrito Federal, esse quadro se revela com força, segundo o psicólogo Wanderson Neves. “Nas áreas de alta pressão por resultados, como bancos e vendas, crescem os casos de ansiedade e burnout. Já nos setores de sobrecarga emocional, como saúde e serviço público, predominam quadros de depressão e estresse. E em funções com pouco reconhecimento, como vigilância e limpeza, há esgotamento e desvalorização”, aponta.
A psicóloga e mentora em comunicação e performance Tiane Amaral acrescenta que fatores sociais também pesam nesse cenário. “Brasília vive uma instabilidade política e institucional que gera insegurança emocional e sensação de imprevisibilidade. Quando somamos a isso a cultura da produtividade e da meritocracia, criamos um ambiente propício ao esgotamento emocional e à perda de sentido no trabalho”, avalia.
Ela lembra que os efeitos da pandemia seguem presentes. “O isolamento, o luto e a transição abrupta entre trabalho remoto e presencial, sem suporte adequado, deixaram cicatrizes que ainda repercutem na saúde emocional dos trabalhadores”, afirma.
Entre os transtornos mais recorrentes, ansiedade e depressão lideram os afastamentos, enquanto o burnout, reconhecido pela OMS como doença ocupacional desde 2022, ainda aparece de forma subnotificada, devido à dificuldade de diagnóstico.
Para Tiane, o estigma segue sendo um dos principais entraves no tratamento. “Vergonha e medo de julgamento impedem que muitos trabalhadores busquem ajuda. O estigma associa os transtornos mentais à fraqueza ou incapacidade, o que reforça a autocensura e a negação dos sintomas”, observa.
Segundo ela, superar essa barreira exige um esforço coletivo. “É preciso educação emocional, políticas públicas inclusivas e acolhimento institucional. Somente assim vamos reduzir o preconceito e dar visibilidade ao sofrimento psíquico”, comenta.
Estigma e silêncio: barreiras para buscar ajuda
Apesar do aumento nos afastamentos relacionados à saúde mental, muitos trabalhadores ainda encontram barreiras para procurar apoio. O medo do julgamento e a vergonha de admitir fragilidade continuam sendo entraves significativos. “O suicídio ainda é tabu. Muitas vezes se acredita que apenas pessoas em situações extremas chegam a esse ponto, mas não é assim. O comportamento suicida pode se manifestar em despedidas veladas, em comentários como ‘não aguento mais’ ou mesmo em planejamentos silenciosos. Não se deve ignorar esses sinais”, explica a psicóloga e doutora em psicologia Camilla Torres, com 22 anos de docência e experiência em orientação de carreira.
Para a especialista, o Setembro Amarelo cumpre um papel crucial ao trazer essa discussão para a sociedade. “É preciso compreender que pode acontecer com qualquer pessoa, especialmente quem enfrenta sintomas depressivos. Não se trata de frescura nem de exagero, é uma questão de vida. E, diante de qualquer suspeita de ideação suicida, o indivíduo precisa de companhia, apoio e acolhimento imediato. O silêncio nunca pode ser a resposta”, alerta.
Camilla ressalta que a prevenção passa pelo diagnóstico precoce. Identificar sintomas depressivos de forma antecipada permite encaminhar o trabalhador para tratamento adequado e acompanhamento contínuo. “Muitas vezes, o que falta não é recurso, mas sensibilidade para enxergar sinais de sofrimento. Mudanças no comportamento, atrasos frequentes, queda no cuidado com a aparência e irritabilidade constante não são apenas indícios de mau humor, mas alertas de que algo mais profundo está acontecendo”, observa.
Outro ponto destacado pela psicóloga é a necessidade de políticas públicas eficazes que combatam o preconceito. Segundo ela, ainda há uma visão equivocada que associa transtornos mentais à fraqueza ou até à má-fé. “Quando um trabalhador se afasta por depressão, muitas vezes os colegas comentam: ‘mas eu vi no shopping, eu vi saindo’. Só que sair de casa faz parte do processo de retomada, não é contradição. O que precisamos entender é que saúde mental é direito de todos e não motivo de chacota”, defende.
Nesse cenário, cabe também às organizações assumir um papel ativo. Camilla aponta que muitas vezes os funcionários compartilham primeiro com colegas próximos, evitando os gestores por receio de represálias. “O ideal seria que as empresas criassem canais seguros de acolhimento, garantindo que a pessoa não se sentisse exposta. Oferecer serviços de escuta e, se necessário, flexibilizar a rotina de trabalho ou viabilizar o afastamento temporário pode ser decisivo para salvar vidas”, pontua.
O papel das empresas e das lideranças
Relatórios da OMS mostram que cada dólar investido em saúde mental retorna quatro em produtividade. Ainda assim, muitas organizações seguem apostando em ações pontuais, como palestras e consultas isoladas. Para Wanderson Neves, isso não basta. “O diferencial está em programas contínuos de capacitação e apoio psicológico integrados à cultura corporativa. Sem constância, tudo vira superficial. Empresas que investem em saúde mental constroem equipes mais fortes e preparadas para lidar com pressão. Ignorar o tema é caro, perigoso e insustentável”, alerta.
Nesse cenário, a liderança ganha papel central. Isabela Ramalho, especialista em desenvolvimento de líderes da Sete Lideranças, destaca que a atuação da liderança pode ser determinante. “Até 70% do engajamento de um time depende do(a) gestor(a). Muitos líderes chegam ao cargo por competência técnica, mas não são preparados para equilibrar resultados e bem-estar. Desenvolver essa escuta ativa é essencial para identificar riscos psicossociais e prevenir adoecimento”, comenta.
Wanderson complementa que um líder saudável e consciente inspira a equipe. “Isso gera confiança e promove um ambiente seguro. A saúde mental antecede a produtividade: só quando cuidamos das pessoas é que alcançamos resultados consistentes e sustentáveis”, opina.
Para além do calendário
Para os especialistas, limitar o debate à campanha do Setembro Amarelo é insuficiente. “Um mês é muito pouco. Lembrar da saúde mental só em setembro é como acender uma vela no meio de um incêndio. É preciso investir em práticas diárias, contínuas e estruturadas. Saúde mental não é custo, é estratégia”, conclui Neves.
Camilla Torres relembra ainda que o diagnóstico precoce e o apoio institucional são decisivos. “Oferecer serviços de acolhimento, flexibilizar jornadas e reduzir estigmas são medidas que salvam vidas e evitam afastamentos prolongados”, afirma.