A devoção a São Jorge sempre fez parte da vida de muitos brasileiros, especialmente cariocas. O santo, um soldado romano nascido na Capadócia, atual Turquia, e martirizado por sua fé cristã, é uma figura religiosa popular. Mesmo que as histórias sobre ele estejam envoltas em lendas.
Desde 1969, as festas em sua homenagem são consideradas apenas facultativas pela Igreja Católica, devido à ausência de algumas informações sobre sua vida. “Como no caso de outros santos envoltos em lendas, a história de São Jorge serve para lembrar ao mundo sobre uma ideia fundamental, de que, no fim, o bem triunfa sobre o mal”, informa o site oficial do Vaticano.
De acordo com o próprio Vaticano, a história do santo é considerada lendária. A mais famosa delas teria nascido no período das Cruzadas e relata que Jorge teria salvado uma princesa de um terrível dragão que vivia em um pântano na Líbia. A lenda, aliás, é eternizada por muitas imagens do santo, que o retratam montado em um cavalo, espetando sua lança em um dragão.
“O dragão que ele lutou não foi o bicho [retratado nas imagens]. O dragão era a falta de fé quando o imperador Diocleciano [sob cujo governo Jorge teria sido martirizado] convocou todos os governadores e prefeitos e disse que eles deveriam perseguir os cristãos e matá-los”, disse o padre Dirceu Rigo, que comanda a paróquia de São Jorge, em Quintino, subúrbio do Rio de Janeiro.
A falta de informações precisas não impede a devoção intensa. As festas promovidas pelas igrejas costumam reunir dezenas de milhares de fiéis nos dias 23 de abril. O padre Dirceu Rigo espera que até o fim deste domingo (23), cerca de 1 milhão de pessoas tenham participado das missas, das comemorações e da procissão.
“O povo carioca é um povo muito sofrido e batalhador. E ele se identifica muito com São Jorge. Essa que é a devoção bonita, de não desanimar, de não perder a esperança, mas lutar. E isso que é bonito de ver nos devotos de São Jorge. Mesmo nas dificuldades, às vezes na tristeza, na dor, no sofrimento, não desanima. Vão à luta para vencer a ‘batalha”, disse o padre.
São Jorge não é alvo só de veneração, mas se tornou um fenômeno pop, estampando camisetas, tatuagens e sendo tema de diversas músicas, livros e até de uma telenovela, a Salve Jorge. Mundialmente, é considerado protetor de escoteiros mirins, soldados e cavaleiros. É padroeiro de países como Inglaterra, Geórgia e Etiópia. Aqui no Brasil, um dos times de futebol mais populares do país, o Corinthians, escolheu o Santo Guerreiro como seu padroeiro. A sede do clube é chamada Parque São Jorge.
No Rio de Janeiro, onde é venerado por sambistas, e pela cultura do samba em geral, a devoção a ele atingiu outro patamar. O dia do santo, 23 de abril, é feriado estadual. E, em maio de 2019, ele se tornou oficialmente padroeiro do estado. O Corpo de Bombeiros do estado tem na figura dele seu protetor, assim como os policiais militares.
Mestre em Educação, João Victor Gonçalves Ferreira estudou as festividades de São Jorge na cidade do Rio. E afirma que o santo é, na verdade, uma figura múltipla. “Aqui no Brasil, ele ganhou muitos sentidos, em especial quando ele é associado aos orixás. Aqui no Sudeste, São Jorge é Ogum, o orixá da tecnologia, do ferro, das batalhas, o orixá guerreiro”.
Na época da escravidão, os africanos aprisionados e trazidos à força para o Brasil passaram a associar seus orixás a figuras católicas a fim de poder manter sua devoção sem serem importunados, dando origem assim ao sincretismo religioso brasileiro. Ogum, deus do ferro e da guerra na mitologia iorubá, foi logo associado ao soldado romano martirizado.
“São Jorge ganha um outro contorno quando a ele são associadas, pelo processo sincrético, algumas características típicas de Ogum. Então é muito comum você, por exemplo, ver cerveja sendo oferecida a São Jorge. No Rio de Janeiro, quem entrou num boteco, já viu um São Jorge, com um copo de cerveja. Isso é típico de São Jorge, porque também é típico de Ogum. O sincretismo trouxe para São Jorge um valor ainda maior. Agregou a ele, valores, cultos e práticas muito simbólicas. E criou-se uma mítica em torno desse santo”, explica Ferreira.
O cantor e compositor Zeca Pagodinho tem uma imensa estátua de São Jorge em sua casa, em Xerém (RJ). Ele é um dos artistas que transformaram sua devoção em música, após compor, com Ratinho, a canção Lua de Ogum, e também gravou Pra São Jorge, de Pecê Ribeiro, e Ogum, de Marquinhos PQD e Claudemir.
“Minha devoção por São Jorge vem desde rapazinho. Eu via os malandros, os sambistas, com cordão de São Jorge. Todo botequim tinha uma estátua de São Jorge. É um guerreiro, cavaleiro do céu”, disse Zeca Pagodinho.
No Rio de Janeiro, o dia do santo é celebrado com cerimônias em terreiros e com festas nas igrejas dedicadas a ele, como as das igrejas de São Jorge do centro e de Quintino, na zona norte da cidade. Outra forma comum de celebrar o santo são as feijoadas promovidas por seus devotos.
“Muitas festas nessa data de 23 de abril vão estar fazendo feijoadas nas ruas, seja comemorando com os amigos seja doando. A feijoada de São Jorge é a comida de Ogum. O feijão é a comida que se oferece a Ogum”, explica o pesquisador João Ferreira. (Agência Brasil)